sábado, 6 de fevereiro de 2016

Sobre cinema,narrativas e barbárie - Análise dos filmes Filho de Saul e Suíte Francesa( sem spoilers)







Escrito sob essa trilha sonora: Suite Francaise Rebulid - I Am Free



Existem coisas sobre as quais nunca falaremos o suficiente e o Holocausto, em minha opinião, sempre estará no topo dessa lista. Há ali tanta barbárie, tantas perguntas, tanto espanto, que jamais estaremos esgotados em nossos assombramentos.Por um desses acasos que a natureza cinéfila as vezes gera, me coube assistir, um após o outro, dois filmes sobre a temática da Segunda Guerra mundial, O Filho de Saul( Laszlo Nemes,2015)e Suíte Francesa(Saul Dibb, 2014). Não vou entrar inicialmente no mérito técnico de cada um, posto que ambos tenham escolhas narrativas distintas e paguem seu preço por isso. A começar, pela câmera.Enquanto em Saul, Nemes opta por empurrar o público no centro dos acontecimentos.colando sua lente ás costas do protagonista(com excelentes over sholders, diga-se de passagem) em Suíte, Dibb é delicado, diáfano em sua fotografia, optando por construir cada plano em um preciosismo de nuances, entre luzes e sombras. Por outro lado, se em Suíte há uma opção por destacar as relações e afetos entre os personagens, em Saul existe um esgarçamento da forma como cada elemento interage com o outro, sem espaço para sutilezas.Cada toque, cada palavra, tem a força de um soco que, ao mesmo tempo que atinge o personagem, chega até o público, sem tréguas. Contudo, embora ambos os diretores tracem caminhos distintos, cada filme exibe o indisfarçável tema, estejamos falando de uma história de amor ou não. Ao final de tudo, fala-se de barbárie.Não de qualquer uma, mas daquela que em apenas seis anos matou ao menos seis milhões de pessoas e deixou marcas em outros milhões até hoje.Parece incrível que, passadas décadas , ainda se possam criar novas narrativas para um mesmo tema, que não se esgota. Ao contrário. Se renova, posto que, em cada baú e em cada alma, ainda há histórias e impressões a serem expostas à luz.Ao que parece, ainda não choramos e nos lamentamos o suficiente e talvez nunca de fato o façamos em demasia. Talvez um dos motivos que fazem o holocausto (palavra que em sua origem define-se pela “queima total”,ou o sacrifício) tão “rico” de narrativas, esteja na definição da historiadora Beatriz Sarlo sobre memória.Para ela, a diversidade de relatos , associados à pesquisa documental, são o único caminho de pesquisa possível, onde o fundamental é compreender, mais do que somente lembrar. E, embora estejamos longe de entender a complexa perversidade que partiu em dois o “breve século XX”(HOBSBAWM, 1994), seguiremos tentando. Nesse caminho, a narrativa fílmica torna-se um poderoso aliado, pela força que alia imagens e sons e convoca cada célula do corpo a pensar e sentir junto com o que é exibido na tela.Porém, ao narrar a barbárie seria necessário ser explícito?Para Laszlo Nemes, não. Iniciando sua história com um foco apenas no protagonista, ele utiliza sua câmera com velocidade para representar um mergulho no inferno,onde prisioneiros aguardam a morte de dezenas de pessoas para recolher seus corpos, queimá-los e lavar a câmara de gás,aguardando novos ocupantes.E se a narração escrita choca,ela não é menos clara do que o filme. Apesar de concentrar-se nas expressões de Saul, o personagem principal, nas brechas deixadas pelo corpo do prisioneiro o diretor deixa ver braços,pernas,estendidos ao chão.Por vezes, apenas pés são suficientes para que a compreensão e o horror se façam.E quando o personagem está no chão, esfregando os dejetos humanos deixados na câmara, não há como fugir.Estamos ali também,de joelhos,ouvindo os gritos, as unhas a arranhar as paredes, os corpos a se chocarem e então,o silêncio. Nossos rostos então entram na câmara, a centímetros do chão, lavando, esfregando,para que a nova leva de vítimas não veja resquício das mortes anteriores e não perca as esperanças antes do tempo. Em nenhum momento o diretor de O filho de Saul dá trégua ao público.Ele o carrega,aos tropeções,por cada parte do campo de concentração, junto com Saul, na busca por um rabino que enterrasse seu filho. Sentimos em nossa pele o calor das fogueiras que se erguem, o cheiro dos corpos queimando, o som das metralhadoras e os prisioneiros, que se esbarram, se chocam, tentando fugir.Assim também tentamos.Voltamos nossos olhos em busca de um momento de afeto,de delicadeza,para poder respirar. Mas Nemes é implacável.Ele não se cansa de exterminar qualquer traço de humanidade, não dando fôlego nem a personagens nem ao público. Estamos, segundo ele, todos mortos.Não há salvação possível,quando permitimos a barbárie,potencializada em uma máquina burocrática e eficiente, que cria justificativas para os assassinatos que comete.Não há elemento atenuante, quando se pensa nas milhares de pessoas que,imersas em seu cotidiano, aceitaram o mal como uma banalidade,ou como algo alheio a si.Em cada ação há o peso de aceitar a morte do outro pela justificativa de não opor-se ao sistema e não correr o risco de morrer.Contudo, a arma que se aponta para o prisioneiro, está a um só tempo em nossas mãos e em nossa cabeça e é esse o grande mérito de Nemes.Sem atenuantes ou desculpas,sem trilha sonora.Apenas a barbárie. Já em Suíte francesa, a trilha sonora é uma da personagens principais, a escolha para acentuar as cores de outra história da Segunda Guerra Mundial.Na cidade francesa de Bussy,a população local é obrigada a hospedar oficiais do exército alemão. Assim inicia-se a história de amor entre Lucile, casada com um combatente francês desaparecido e Bruno, oficial da SS.É a música, que ambos tocam, o elemento de comunicação que atravessa o lugar social dos dois.Embora não tenha a força de O filho de Saul (que poucos filmes teriam, de fato),também em Suíte a barbárie é delineada.Há cenas de bombardeio, fuzilamento e selvageria. Mas,além da opção pelo romance, o diretor,Saul Dibb, tece as sutilezas da ocupação da cidade.Nas relações que vão sendo criadas a conveniência e a necessidade mudam papeis, levando moradores a se relacionarem (por vontade ou por obrigação) com os militares alemães.E se há um mérito no filme, é pelo esforço em fazer cada personagem pensar continuamente seu lugar social e as justificativas de seus atos.Afinal, em um cenário de guerra,qualquer ação pode desencadear consequências fatais para toda a comunidade.Contudo,o que de mais grave pode ocorrer é o esquecimento.E é na contramão do silenciamento que os dois filmes esforçam-se para narrar, cada um a seu modo, recortes distintos de um mesmo tempo.Seja pesando a mão, ou optando pelas cores delicadas e iluminação suave,ambas as histórias,ao final de tudo, falam de barbárie. E assim, narrar nunca será suficiente.Será sempre necessário buscar, em nossos baús e memórias,componentes que ajudem a montar esse quebra-cabeças . E, uma vez montada, a imagem sempre nos causará horror, pois ali, no período de 1939 a 1945,veremos refletidas muitas ideias que infelizmente ainda trazemos conosco. Está ali,impresso na carne,o pensamento eugênico que sustentou a solução final nazista, mas que continua latente, no imaginário contemporâneo que sustenta que uns são melhores do que outros e portanto,dignos de viver, sob privilégios, políticos,econômicos,culturais.Continuamos a dividir nossos territórios e decidir quem vive e quem morre e a armar nossos soldados para que eliminem o que consideramos “impuro”. Continuamos a justificar nossas mortes em prol de um “bem maior” e a fechar nossos olhos quando vemos o massacre de famílias, crianças,mulheres,idosos, mortos nas linhas de tiro estabelecidas pelo Estado.E ainda tentamos encontrar rótulos nos quais apoiar nossa cegueira, acreditando por vezes que “se nasce bandido”, como antes “se nascia judeu”.Nossas desculpas não melhoraram,passados tantos anos.Tornamos-nos apenas mais cínicos e mais cheios de ferramentas com as quais nos “desinformar”. Resta-nos a arte, particularmente o cinema,não como ferramenta de fazer ver,uma vez que já sabemos que o excesso de luz nem sempre é garantia de compreensão.Ao contrário.As vezes, o cinema, ao utilizar-se de silêncios,de imagens desfocadas,lacunas e subentendidos, faz melhor seu papel de experiência sensível, na qual devemos mergulhar de corpo e alma em busca de respostas. Será então nas brechas do dito em que a narrativa fílmica encontrará seu mais profundo significado.E se o olho,ante o horror,se fecha, restam os ouvidos, a pele,os ossos, que captam a narrativa e a tornam (se estivermos atentos) reflexão e consciência,sobre nós e sobre a (por vezes) inacreditável, realidade que nos cerca.