sexta-feira, 30 de março de 2012
Pausa para uma crônica:A menina que vivia num filme
Era quase tão fácil quanto brincar.. Na vila da minha vó, onde os meus muitos primos costumavam brincar, o chão de pedras virava escorrega, virava foguete, virava esconderijo onde os grupos, divididos em dois, guardavam as bandeirinhas ou corriam para se esconder, numa urgência do pique-pega ou do pique-alto, quem ficasse por último ia invariavelmente para o meio da rua. Eu também me escondia, na pressão infantil que me fazia participar,mas, quando podia, escapulia para escadinha da varanda, onde me sentava, nos meus três ou quatro anos, pra observar a brincadeira alheia. Era ali, no meu silêncio reverente à ação alheia, que residia à melhor parte da minha diversão. Observar os outros brincarem, imaginar falas e fantasiar cenários, era meu brinquedo particular, minha fuga da realidade e a parte mais legal de estar ali. Mais tarde percebi que o costume de me distanciar da ação e passar a observar a cena como se não fizesse parte dela era uma segunda natureza e eu, ao longo da infância, por muitas vezes me surpreendia observando embevecida as conversas entre os adultos da minha família, entre risos e histórias que eu não me cansava de ouvir. Lembro de ouvir tantos "causos" e me sentir tão feliz com a presença de alguns tios meus, que pedia intimamente que o tempo congelasse naquele momento, para eu absorver todo o encantamento que me causavam suas presenças, os risos e as conversas, tanto que era comum ouvir a frase:-"vai brincar menina”e me deixar ficar ali, em estado de vigília, tentando segurar o tempo, como quem interrompe o fluxo das horas só por força da minha própria vontade. Conforme eu ia crescendo, fui percebendo que as vezes durar é a pior coisa que pode acontecer a um momento e que a magia residia tão somente na passagem das horas, que modifica constantemente o cenário, mas guarda na memória o encantamento e por vezes a dor de cada história que vivemos.Hoje, estudante de cinema, entendo que a imagem que eu tentava tão firmemente gravar de meus primos brincando ou das conversas da minha família, eram trechos de histórias que eu queria contar, na narrativa da minha imaginação e tendo meus próprios olhos como ferramentas de apreensão da minha então realidade.Mais do que construir um real, o cinema dialoga com o tempo, tecendo tramas onde sentimento e imagem vão se entrelaçar, guardando em película todas as histórias que puderem ser contadas.Escrever com a luz, como se diz de quem faz cinema, é a tarefa de dar materialidade à memória ,no intervalo entre o sonho e a realidade e ação por vezes involuntária de todo e qualquer ser humano.Somos às vezes confrontados com imagens que irrompem por nosso universo simbólico, provocando indignação, dor ou enlevo, mas nem sempre conseguirmos dar-lhes moldura de concretude,ficando esquecidas em nossa memória até o momento em que decidimos compartilhá-las através da arte.Era assim que eu, já aprendendo a ler,usava palavras que em muitos casos não conhecia o significado, mas que impregnavam minha memória com diversos sentidos possíveis, assim como as imagens que eu tentava avidamente reter em desenhos e pequenos textos, certa de que serviriam para contar a quem quisesse ler, uma parte da minha vida, mas também de uma realidade que só eu conseguira enxergar,como sempre são todas as histórias sempre.Era mágico e eu naquele tempo não poderia adivinhar que vivia num filme, criado dentro de minha cabeça esperando apenas o momento certo de tornar-se eterno.
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