terça-feira, 26 de novembro de 2019

It’s not about W. Allen

Me lembro a primeira vez em que assisti um filme do Sr Allen. Provavelmente fora Tudo que você sempre quis saber sobre sexo e eu devia ter onze anos. Dessa época ainda tenho a impressão de que o filme de fato não era sério, nem pretendia ser algo além de uma comédia despretensiosa com algumas piadas inteligentes. Ao longo do tempo fui descobrindo o viés intelectualizado do diretor e aos poucos conheci um pouco do gênio, muito antes do escândalo de pedofilia que envolvia uma menina de sete anos (mencionei que era sua enteada?). Até aí eu já vira Noivo neurótico, noiva nervosa e Manhattan, mas foi somente em A rosa púrpura do Cairo e nas muitas referências que se fizeram por anos sobre o filme em que comecei de fato a ficar curiosa com a obra, muito mais do que com o autor. Havia algo em Woody Allen que me incomodava e eu realmente não conseguia nomear. Talvez fosse um excesso de egolatria ou o fato de seu nome ser uma unanimidade entre cinéfilos, isso bem antes de vir a me considerar uma. O fato é que a filmografia do então respeitável senhor de óculos não me impressionava e os elogios rasgados à estética de Allen me pareciam demasiados, mesmo após ver Hannah e suas irmãs. Foi quando uma professora de quem eu gostava muito me convenceu a assistir Woody Allen com o coração aberto, porque havia muita sensibilidade, os diálogos eram incríveis e a estética, primorosa. A contragosto separei Scoop e Matchpoint para rever e então me deparei com Vicky, Cristina, Barcelona e conheci Javier Bardem, incrível, extraordinariamente sedutor, despudoramente cínico. Ah sim, eu já havia visto Amor nos tempos da cólera, mas foi somente em Vicky que realmente enxerguei Bardem, em um affair coletivo com Scarlett Johansson, Rebecca Hall e ainda Penelópe Cruz. Se há alguma coisa mais excitante do que Javier Bardem com uma taça de vinho nas mãos propondo um triângulo amoroso em meio às mesas de um restaurante, com certeza não foi filmado pelo cinema. E assim acabei sendo seduzida não necessariamente pela narrativa de Woody Allen, mas pela genial escolha de unir atores com uma química incrível em um ambiente para lá de sexy, sob uma luz perfeita. A partir daí passei a ver todos os filmes do diretor que passavam pelas minhas mãos, em DVD ou no cinema: Melinda e Melinda, Tudo pode dar certo, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos , até que finalmente cheguei a Meia noite em Paris. Pela primeira vez eu não era seduzida por um personagem, mas pela história de Allen: um escritor, em Paris, em meio à chuva, conhecendo seus ídolos das artes, entre idas e vindas no tempo sob uma luz exageradamente dourada, que tornava as ruas da capital francesa ainda mais belas. Ok, eu estava convencida, Marion Cottilard estava mesmo incrível e tínhamos até mesmo um convincente Ernest Hemingway dialogando com Buñel e Dali.Nem era necessário que se vislumbrasse Degas e Toulose-Latrec juntos, para me entregar ao amor pelo filme. A sequência de abertura já fizera seu trabalho, narrando um dia em uma Paris chuvosa. Outras cidades vieram, Allen foi à Roma e São Francisco e eu definitivamente aprendi que existia amor em Woody Allen. Até chegar a Um dia de chuva em nova York, último filme do diretor. Uma cidade linda, sob chuva, a magnífica luz dourada de Allen e uma historia de muitos diálogos. O que poderia dar errado? Eu esquecera de fato que uma obra é fruto de um sujeito que, mesmo que não queira, coloca muito de si em cada parte daquilo que faz. E infelizmente há muito de Woody Allen em Um dia de chuva. Do homem idoso (da pior forma de envelhecer), de olhar complacente para o feminino, misógino ao olhar mais atento e por que não - terrivelmente pedófilo, seja em seus planos, seja na escolha dos figurinos ou nas falas dos personagens. As mulheres, no último filme de W. Allen, são ingênuas se belas e desinteressantes se maduras. Os homens, por sua vez são eruditos, ansiosos, entediados e muito dispostos a perdoar suas próprias falhas em detrimento do próprio prazer. O diretor não tem pudor em desnudar uma jovem estudante de jornalismo, em meio à forte chuva de Nova York e fazê-la percorrer as ruas da cidade usando uma capa de chuva, apenas para provar seu argumento – como se houvesse ainda alguma dúvida - de quem Hollywood devora jovens curiosas e belas, inocentes o suficiente para caírem nas garras dos sedutores galãs decadentes de Allen, homens normalmente em crise de meia idade e dispostos a tudo por mais uma fração de juventude. É fato que- extrema concessão- Chan, a personagem de Selena Gomez, é um sopro de vida diante da total apatia do protagonista, não por acaso denominado Gatsby. Os jovens são belos e têm uma boa química juntos e afinal estamos diante do inescapável talento de Woody Allen para a a linguagem escrita, de luz e cor, no roteiro, direção de arte e fotografia, com um tom dourado que torna ainda mais bela a juventude dos personagens e o olhar saudoso do diretor para um frescor que talvez jamais tenha conhecido. O que grita em cada minuto do filme é um discurso de autoelogio à erudição de Allen e um total menosprezo ao feminino, em qualquer instância. Para o diretor, mulheres são meros coadjuvantes necessários ao desenvolvimento de uma cena, passiveis de serem despidas em suas intenções, ideias ou paixões, ao bel prazer da afirmação da frágil masculinidade de Allen. Permanecei em estado de total revolta os quase 93 min do filme, parando apenas vez por outra para admirar a beleza da luz dourada, quase estourada, da obra até os 3 minutos finais da narrativa, quando há o desenlace amoroso do filme e finalmente entendemos o que estamos fazendo ali: não é sobre Allen e é bom que não seja visto que é impossível observar seus planos e enquadramentos e a forma invasiva como retrata a jovem protagonista em big closes e primeiros planos de pernas e seios sem relacionar à vida pessoal do diretor. Ainda assim, por maior que seja a crítica, há dois personagens sob a chuva, cabelos molhados, roupas amassadas, olhos nos olhos para fazer entender que nunca foi sobre Woody Allen. É sobre contar histórias que façam-nos confrontar com a imprevisibilidade dos encontros, da necessidade de se estar suficientemente distraído para captar a poesia do cotidiano, seja qual for a cidade onde se esteja e de compreender o amor como um componente fundamental do humano, dentro de um contexto de imprevisibilidade, falhas e uso de clichês. Nunca foi sobre Allen e sua incurável misoginia, mas sobre o olhar que o cinema escrito e realizado por ele que deixa antever, nos intervalos das cenas, nos espaços de silêncio das falas, um instante mágico, não necessariamente permeado da forte luz dourada que atravessa os pingos de chuva de Nova York ou sob belas mãos masculinas, de posse de uma taça de vinho, mas do humano que escapa ao contexto, a tudo que é dito, mas que é sentido por entre as brechas da linguagem em um fragmento de poesia.Certamente obra dos deuses do cinema que o diretor, com inegável competência técnica, soube captar.

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