sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Histórias que só existem quando lembradas ou qual filme vamos ver hoje?

fonte:oglobo

fonte:https://cinemagia.wordpress.com/2009/02/24/cinemas-antigos-roxy-rj/

Era quase como um ritual. Sem marcação prévia, nos reuníamos no pátio do Bloco E, em meio a um CEFET caótico, onde sempre havia uma obra por terminar, um vazamento de água no chão e uma greve iminente. De todos os lados chegávamos, do pavilhão, das salas de aula precárias, dos corredores empoeirados. Alguns, (o/ cof cof), chegavam somente para isso, para o encontro de todos os dias, para nos reunirmos nos bancos verdes do Bloco em frente ao auditório e pensarmos e cantarmos o mundo. A mim, que fora criada em uma escola onde se pedia licença para beber água e ir ao banheiro, me parecia mágico que pudéssemos nos reunir ali por horas seguidas, violões em punho, passando em revista todas as músicas que conhecíamos. Foi ali que revi as canções da minha infância, tocadas e esmiuçadas pela minha mãe no chão da minha sala, enquanto me explicava o mundo em fragmentos de Gil, Caetano e Chico. Enquanto ouço hoje as vozes dos “doces bárbaros”, ainda pareço sentir o vento fresco que circundava o pátio, independente do verão lá fora, enquanto estendíamos nossos jalecos azuis no chão. Mas havia dias em que a música não bastava. Era preciso mergulhar, corpo e alma, em outras narrativas. Acontece que estávamos na década de 1990 e a Tijuca, bairro onde estudávamos, concentrava um número tal de salas de exibição que era denominada a Segunda Cinelândia (FERRAZ,2009), nome que até hoje perdura...Ainda no pátio nos reuníamos, não decidíamos o filme, não sabíamos o horário, naquele tempo não havia celular ou aplicativos. Nos juntávamos apenas, tomávamos nossos jalecos, partíamos para a Saens Pena, a praça mais apertada e movimentada do Rio, com suas bancas de camelô dividindo espaço com ônibus, carros e táxis, as muitas lojas de bijuterias, os cafés e óticas e drogarias. Aqui e ali, nas esquinas e galerias, em meio à rua, havia os cinemas, muitos de não contar, se abrindo em escadas, veludo vermelho e Art Decó, convidando a entrar. Frequentemente passávamos em cada um deles, caminhando na estreita calçada, desviando dos ônibus e passantes. De dentro da sala, por vezes, ainda ouvíamos resquícios da paisagem sonora, as vozes e sons urbanos misturados, fazendo um único som ambiente. Costumava ser ali, no Cine América, onde parávamos, pois era o primeiro da rua. Naquela sala assisti a Tom Hanks atravessar o Lago do Obelisco em Washington, para abraçar uma Robin Wright riponga, em meio aos protestos anti-guerra do Vietnã e aprendi que a vida era como uma caixa de bombons, nunca se sabe o que iríamos encontrar. Também o eram as salas de cinema, ao menos para nós. Como não sabíamos dos horários e filmes, sempre era uma surpresa o filme que iríamos ver. Uma vez nos atrasamos, chegamos à sala, que hoje me parece ser a do Art Palácio Tijuca, na primeira cena de O Corvo, filme de Brandon Lee, no qual o ator morrera durante as filmagens. Adentramos a enorme sala de exibição, de pé direito alto, passando por entre os 1500 lugares que o espaço comportava, tropeçando nas escadas forradas com tapete vermelho e chegando até o segundo andar, justamente na hora em que o Corvo, em meio à chuva, era assassinado. Paralisamos, os olhos grudados na tela. A sala em completa escuridão, na beirada do balcão e o maravilhoso sistema de som do Art Palácio fizeram com que o filme nos atravessasse a alma, a chuva cênica fazendo nossos ossos congelarem, de medo e de frio, como, se tivéssemos acabado de presenciar a morte de Lee. Um pouco depois, durante o filme, alguém sussurrou que aquela não tinha sido a cena onde o ator morrera, mas outra, bem no meio do filme. Para mim, entretanto a morte de Brandon Lee ficaria pra sempre associada ao momento em que o corvo é arremessado pela janela de seu apartamento, em meio à chuva, diante dos meus olhos, na escuridão da sala. E assim o cinema se tornou território, extensão da sala de aula onde pouco ou nada aprendíamos de relevante( o que ainda hoje carrego do segundo grau e isso me é fundamental são as pessoas que amo e as histórias que vivi, e me basta. Me preencheram a vida).Em cada sala, nos filmes que víamos, ocupávamos e ressignificávamos o espaço, com nossas mochilas, canudos,pastas e jalecos(quem não fez CEFET não pode imaginar a quantidade de material que utilizávamos, em pastas, papéis e ferramentas,sim,ferramentas), fazíamos daquela sala uma extensão de nossa escola. Um dia chegamos no CEFET e não havia aula (não me lembro bem o motivo, mas acredito que era uma paralisação). Estávamos no pátio, eu e mais quatro amigas. Alguém sugeriu: vamos à Copacabana? Decisão aceita, pegamos o ônibus e descemos no bairro mais famoso do Rio de Janeiro.Pecorremos as ruas, em meio a um sol luminoso e chegamos ao cinema. Era a primeira vez que eu entrava no Roxy e me apaixonei instantaneamente pelas escadas, as portas envidraçadas, a atmosfera Art Decò(eu não fazia a menor ideia do que era art decò). O filme não podia ser outro: Priscila, a rainha do deserto. Na tela gigantesca (assistimos ao filme antes da reforma que dividiu o Proxy em salas menores), as músicas da Era Disco, em plumas, cores e glitter, se fixaram permanentemente em minha retina, falando de amor, viagens e diversidade. Filme visto, era preciso, absolutamente obrigatório tomarmos um sorvete na Sorveteria do Alex, para completar a experiência. Voltamos de ônibus, apreciando a paisagem, sem nos darmos conta do privilégio que era estar ali, ser jovem na década de 1990 e poder desfrutar, a cada dia, de histórias contadas em cada centímetro de película. O tempo passou, a decadência dos cinemas de rua fechou todas (ou quase todas) as salas de exibição ao longo da cidade. Na Tijuca, os cinemas foram maquiavelicamente substituídos por drogarias, lojas e, supremo pecado, Igrejas Universais. No ambiente onde se sonhava, hoje se reza e se compra a salvação, do corpo e da alma. Em alguns espaços, a estrutura do cinema adormece debaixo de tapumes, paredes falsas, empoeirada e gasta. É curioso que, mesmo nos usos mais retrógrados, exista ainda algum respeito, ou temor, que os faça preservar algumas cadeiras, uma parte da mobília, ou mesmo o projetor. Quem sabe ouçam, em meio às orações, nossos risos e lágrimas, nós os frequentadores das salas. Quem sabe percebam, mesmo sem ver, o elemento sensível que persiste, entre as paredes, no que restou do mármore das colunas, no veludo rasgado das poltronas. A razão eu não poderia precisar. Sei que ainda hoje, quando passo na Tijuca, posso ver, em meio ao mesmo caos urbano, um bando de adolescentes, se equilibrando no meio fio, enormes mochilas nas costas, canudos e pastas nas mãos, perdendo as aulas para ir ao cinema. Sob as salas fechadas, as telas desativadas, nossas histórias misturadas aos filmes, permanecem ali, esperando para serem contadas.

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