terça-feira, 26 de novembro de 2019

It’s not about W. Allen

Me lembro a primeira vez em que assisti um filme do Sr Allen. Provavelmente fora Tudo que você sempre quis saber sobre sexo e eu devia ter onze anos. Dessa época ainda tenho a impressão de que o filme de fato não era sério, nem pretendia ser algo além de uma comédia despretensiosa com algumas piadas inteligentes. Ao longo do tempo fui descobrindo o viés intelectualizado do diretor e aos poucos conheci um pouco do gênio, muito antes do escândalo de pedofilia que envolvia uma menina de sete anos (mencionei que era sua enteada?). Até aí eu já vira Noivo neurótico, noiva nervosa e Manhattan, mas foi somente em A rosa púrpura do Cairo e nas muitas referências que se fizeram por anos sobre o filme em que comecei de fato a ficar curiosa com a obra, muito mais do que com o autor. Havia algo em Woody Allen que me incomodava e eu realmente não conseguia nomear. Talvez fosse um excesso de egolatria ou o fato de seu nome ser uma unanimidade entre cinéfilos, isso bem antes de vir a me considerar uma. O fato é que a filmografia do então respeitável senhor de óculos não me impressionava e os elogios rasgados à estética de Allen me pareciam demasiados, mesmo após ver Hannah e suas irmãs. Foi quando uma professora de quem eu gostava muito me convenceu a assistir Woody Allen com o coração aberto, porque havia muita sensibilidade, os diálogos eram incríveis e a estética, primorosa. A contragosto separei Scoop e Matchpoint para rever e então me deparei com Vicky, Cristina, Barcelona e conheci Javier Bardem, incrível, extraordinariamente sedutor, despudoramente cínico. Ah sim, eu já havia visto Amor nos tempos da cólera, mas foi somente em Vicky que realmente enxerguei Bardem, em um affair coletivo com Scarlett Johansson, Rebecca Hall e ainda Penelópe Cruz. Se há alguma coisa mais excitante do que Javier Bardem com uma taça de vinho nas mãos propondo um triângulo amoroso em meio às mesas de um restaurante, com certeza não foi filmado pelo cinema. E assim acabei sendo seduzida não necessariamente pela narrativa de Woody Allen, mas pela genial escolha de unir atores com uma química incrível em um ambiente para lá de sexy, sob uma luz perfeita. A partir daí passei a ver todos os filmes do diretor que passavam pelas minhas mãos, em DVD ou no cinema: Melinda e Melinda, Tudo pode dar certo, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos , até que finalmente cheguei a Meia noite em Paris. Pela primeira vez eu não era seduzida por um personagem, mas pela história de Allen: um escritor, em Paris, em meio à chuva, conhecendo seus ídolos das artes, entre idas e vindas no tempo sob uma luz exageradamente dourada, que tornava as ruas da capital francesa ainda mais belas. Ok, eu estava convencida, Marion Cottilard estava mesmo incrível e tínhamos até mesmo um convincente Ernest Hemingway dialogando com Buñel e Dali.Nem era necessário que se vislumbrasse Degas e Toulose-Latrec juntos, para me entregar ao amor pelo filme. A sequência de abertura já fizera seu trabalho, narrando um dia em uma Paris chuvosa. Outras cidades vieram, Allen foi à Roma e São Francisco e eu definitivamente aprendi que existia amor em Woody Allen. Até chegar a Um dia de chuva em nova York, último filme do diretor. Uma cidade linda, sob chuva, a magnífica luz dourada de Allen e uma historia de muitos diálogos. O que poderia dar errado? Eu esquecera de fato que uma obra é fruto de um sujeito que, mesmo que não queira, coloca muito de si em cada parte daquilo que faz. E infelizmente há muito de Woody Allen em Um dia de chuva. Do homem idoso (da pior forma de envelhecer), de olhar complacente para o feminino, misógino ao olhar mais atento e por que não - terrivelmente pedófilo, seja em seus planos, seja na escolha dos figurinos ou nas falas dos personagens. As mulheres, no último filme de W. Allen, são ingênuas se belas e desinteressantes se maduras. Os homens, por sua vez são eruditos, ansiosos, entediados e muito dispostos a perdoar suas próprias falhas em detrimento do próprio prazer. O diretor não tem pudor em desnudar uma jovem estudante de jornalismo, em meio à forte chuva de Nova York e fazê-la percorrer as ruas da cidade usando uma capa de chuva, apenas para provar seu argumento – como se houvesse ainda alguma dúvida - de quem Hollywood devora jovens curiosas e belas, inocentes o suficiente para caírem nas garras dos sedutores galãs decadentes de Allen, homens normalmente em crise de meia idade e dispostos a tudo por mais uma fração de juventude. É fato que- extrema concessão- Chan, a personagem de Selena Gomez, é um sopro de vida diante da total apatia do protagonista, não por acaso denominado Gatsby. Os jovens são belos e têm uma boa química juntos e afinal estamos diante do inescapável talento de Woody Allen para a a linguagem escrita, de luz e cor, no roteiro, direção de arte e fotografia, com um tom dourado que torna ainda mais bela a juventude dos personagens e o olhar saudoso do diretor para um frescor que talvez jamais tenha conhecido. O que grita em cada minuto do filme é um discurso de autoelogio à erudição de Allen e um total menosprezo ao feminino, em qualquer instância. Para o diretor, mulheres são meros coadjuvantes necessários ao desenvolvimento de uma cena, passiveis de serem despidas em suas intenções, ideias ou paixões, ao bel prazer da afirmação da frágil masculinidade de Allen. Permanecei em estado de total revolta os quase 93 min do filme, parando apenas vez por outra para admirar a beleza da luz dourada, quase estourada, da obra até os 3 minutos finais da narrativa, quando há o desenlace amoroso do filme e finalmente entendemos o que estamos fazendo ali: não é sobre Allen e é bom que não seja visto que é impossível observar seus planos e enquadramentos e a forma invasiva como retrata a jovem protagonista em big closes e primeiros planos de pernas e seios sem relacionar à vida pessoal do diretor. Ainda assim, por maior que seja a crítica, há dois personagens sob a chuva, cabelos molhados, roupas amassadas, olhos nos olhos para fazer entender que nunca foi sobre Woody Allen. É sobre contar histórias que façam-nos confrontar com a imprevisibilidade dos encontros, da necessidade de se estar suficientemente distraído para captar a poesia do cotidiano, seja qual for a cidade onde se esteja e de compreender o amor como um componente fundamental do humano, dentro de um contexto de imprevisibilidade, falhas e uso de clichês. Nunca foi sobre Allen e sua incurável misoginia, mas sobre o olhar que o cinema escrito e realizado por ele que deixa antever, nos intervalos das cenas, nos espaços de silêncio das falas, um instante mágico, não necessariamente permeado da forte luz dourada que atravessa os pingos de chuva de Nova York ou sob belas mãos masculinas, de posse de uma taça de vinho, mas do humano que escapa ao contexto, a tudo que é dito, mas que é sentido por entre as brechas da linguagem em um fragmento de poesia.Certamente obra dos deuses do cinema que o diretor, com inegável competência técnica, soube captar.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Histórias que só existem quando lembradas ou qual filme vamos ver hoje?

fonte:oglobo

fonte:https://cinemagia.wordpress.com/2009/02/24/cinemas-antigos-roxy-rj/

Era quase como um ritual. Sem marcação prévia, nos reuníamos no pátio do Bloco E, em meio a um CEFET caótico, onde sempre havia uma obra por terminar, um vazamento de água no chão e uma greve iminente. De todos os lados chegávamos, do pavilhão, das salas de aula precárias, dos corredores empoeirados. Alguns, (o/ cof cof), chegavam somente para isso, para o encontro de todos os dias, para nos reunirmos nos bancos verdes do Bloco em frente ao auditório e pensarmos e cantarmos o mundo. A mim, que fora criada em uma escola onde se pedia licença para beber água e ir ao banheiro, me parecia mágico que pudéssemos nos reunir ali por horas seguidas, violões em punho, passando em revista todas as músicas que conhecíamos. Foi ali que revi as canções da minha infância, tocadas e esmiuçadas pela minha mãe no chão da minha sala, enquanto me explicava o mundo em fragmentos de Gil, Caetano e Chico. Enquanto ouço hoje as vozes dos “doces bárbaros”, ainda pareço sentir o vento fresco que circundava o pátio, independente do verão lá fora, enquanto estendíamos nossos jalecos azuis no chão. Mas havia dias em que a música não bastava. Era preciso mergulhar, corpo e alma, em outras narrativas. Acontece que estávamos na década de 1990 e a Tijuca, bairro onde estudávamos, concentrava um número tal de salas de exibição que era denominada a Segunda Cinelândia (FERRAZ,2009), nome que até hoje perdura...Ainda no pátio nos reuníamos, não decidíamos o filme, não sabíamos o horário, naquele tempo não havia celular ou aplicativos. Nos juntávamos apenas, tomávamos nossos jalecos, partíamos para a Saens Pena, a praça mais apertada e movimentada do Rio, com suas bancas de camelô dividindo espaço com ônibus, carros e táxis, as muitas lojas de bijuterias, os cafés e óticas e drogarias. Aqui e ali, nas esquinas e galerias, em meio à rua, havia os cinemas, muitos de não contar, se abrindo em escadas, veludo vermelho e Art Decó, convidando a entrar. Frequentemente passávamos em cada um deles, caminhando na estreita calçada, desviando dos ônibus e passantes. De dentro da sala, por vezes, ainda ouvíamos resquícios da paisagem sonora, as vozes e sons urbanos misturados, fazendo um único som ambiente. Costumava ser ali, no Cine América, onde parávamos, pois era o primeiro da rua. Naquela sala assisti a Tom Hanks atravessar o Lago do Obelisco em Washington, para abraçar uma Robin Wright riponga, em meio aos protestos anti-guerra do Vietnã e aprendi que a vida era como uma caixa de bombons, nunca se sabe o que iríamos encontrar. Também o eram as salas de cinema, ao menos para nós. Como não sabíamos dos horários e filmes, sempre era uma surpresa o filme que iríamos ver. Uma vez nos atrasamos, chegamos à sala, que hoje me parece ser a do Art Palácio Tijuca, na primeira cena de O Corvo, filme de Brandon Lee, no qual o ator morrera durante as filmagens. Adentramos a enorme sala de exibição, de pé direito alto, passando por entre os 1500 lugares que o espaço comportava, tropeçando nas escadas forradas com tapete vermelho e chegando até o segundo andar, justamente na hora em que o Corvo, em meio à chuva, era assassinado. Paralisamos, os olhos grudados na tela. A sala em completa escuridão, na beirada do balcão e o maravilhoso sistema de som do Art Palácio fizeram com que o filme nos atravessasse a alma, a chuva cênica fazendo nossos ossos congelarem, de medo e de frio, como, se tivéssemos acabado de presenciar a morte de Lee. Um pouco depois, durante o filme, alguém sussurrou que aquela não tinha sido a cena onde o ator morrera, mas outra, bem no meio do filme. Para mim, entretanto a morte de Brandon Lee ficaria pra sempre associada ao momento em que o corvo é arremessado pela janela de seu apartamento, em meio à chuva, diante dos meus olhos, na escuridão da sala. E assim o cinema se tornou território, extensão da sala de aula onde pouco ou nada aprendíamos de relevante( o que ainda hoje carrego do segundo grau e isso me é fundamental são as pessoas que amo e as histórias que vivi, e me basta. Me preencheram a vida).Em cada sala, nos filmes que víamos, ocupávamos e ressignificávamos o espaço, com nossas mochilas, canudos,pastas e jalecos(quem não fez CEFET não pode imaginar a quantidade de material que utilizávamos, em pastas, papéis e ferramentas,sim,ferramentas), fazíamos daquela sala uma extensão de nossa escola. Um dia chegamos no CEFET e não havia aula (não me lembro bem o motivo, mas acredito que era uma paralisação). Estávamos no pátio, eu e mais quatro amigas. Alguém sugeriu: vamos à Copacabana? Decisão aceita, pegamos o ônibus e descemos no bairro mais famoso do Rio de Janeiro.Pecorremos as ruas, em meio a um sol luminoso e chegamos ao cinema. Era a primeira vez que eu entrava no Roxy e me apaixonei instantaneamente pelas escadas, as portas envidraçadas, a atmosfera Art Decò(eu não fazia a menor ideia do que era art decò). O filme não podia ser outro: Priscila, a rainha do deserto. Na tela gigantesca (assistimos ao filme antes da reforma que dividiu o Proxy em salas menores), as músicas da Era Disco, em plumas, cores e glitter, se fixaram permanentemente em minha retina, falando de amor, viagens e diversidade. Filme visto, era preciso, absolutamente obrigatório tomarmos um sorvete na Sorveteria do Alex, para completar a experiência. Voltamos de ônibus, apreciando a paisagem, sem nos darmos conta do privilégio que era estar ali, ser jovem na década de 1990 e poder desfrutar, a cada dia, de histórias contadas em cada centímetro de película. O tempo passou, a decadência dos cinemas de rua fechou todas (ou quase todas) as salas de exibição ao longo da cidade. Na Tijuca, os cinemas foram maquiavelicamente substituídos por drogarias, lojas e, supremo pecado, Igrejas Universais. No ambiente onde se sonhava, hoje se reza e se compra a salvação, do corpo e da alma. Em alguns espaços, a estrutura do cinema adormece debaixo de tapumes, paredes falsas, empoeirada e gasta. É curioso que, mesmo nos usos mais retrógrados, exista ainda algum respeito, ou temor, que os faça preservar algumas cadeiras, uma parte da mobília, ou mesmo o projetor. Quem sabe ouçam, em meio às orações, nossos risos e lágrimas, nós os frequentadores das salas. Quem sabe percebam, mesmo sem ver, o elemento sensível que persiste, entre as paredes, no que restou do mármore das colunas, no veludo rasgado das poltronas. A razão eu não poderia precisar. Sei que ainda hoje, quando passo na Tijuca, posso ver, em meio ao mesmo caos urbano, um bando de adolescentes, se equilibrando no meio fio, enormes mochilas nas costas, canudos e pastas nas mãos, perdendo as aulas para ir ao cinema. Sob as salas fechadas, as telas desativadas, nossas histórias misturadas aos filmes, permanecem ali, esperando para serem contadas.

domingo, 17 de setembro de 2017

Como nossos pais- opinião

Posso dizer que por muito tempo tive certa preguiça de Maria Ribeiro..Achava meios óbvios os personagens e em todos os filmes sua interpretação parecia mais do mesmo.Assim, ao ouvir os rumores de críticas positivas ao novo "Como nossos pais", não me mobilizei de cara..Quem me conhece sabe que a última coisa que leio é a crítica de determinado filme...Podem chamar de chatice ou preguiça mesmo.O fato é que não gosto de ser levada por "a prioris" antes de ir ao cinema..Contudo, para não ser levada pela minha própria implicância, resolvi arriscar. Em "Como nossos pais", Maria Ribeiro ainda está lá, linda e essencialmente ela mesma.A diferença é que sua "personagem", Rosa, se adapta perfeitamente à história. Nada além de um cotidiano rasgado onde as relações familiares são esgarçadas, sob o peso de uma câmera despretensiosa.. Sobra espaço para os conflitos de marido e mulher, mãe e filhos, encontros e desencontros.E para o óbvio talento de Clarisse Abujamra, na pele da personagem de mesmo nome, Clarice, mãe de Rosa. Já na primeira cena, o confronto de mãe e filha toma todo o espaço.Resta aos demais atores,Paulo Vilhena entre eles, ocupar as sobras da mise-en-scene em atuações bastante satisfatórias.. Mas é na beleza do confronto uterino de Clarice e Rosa e sua posterior trégua (spoiler sem prejuízo aos que vão assistir ao filme.Dado o "quê", resta o "como") que Como nossos pais comove..À parte os discursos ferinos, é no olhar, que se adoça, quase à contragosto, em que reside o componente poético mais representativo do filme....

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Sobre Hotel Cambridge e a fronteira entre verdade e ficção

Se há uma coisa que nos ensinam desde 1895 é a classificar o cinema entre gêneros, modos e intenções. Entre tais sistemas, talvez a maior separação de todas envolva o cinema dito de ficção e o cinema dito documental. Assim, mesmo antes da primeira sequência de um filme, não é difícil ouvir ou mesmo perguntar: é ficção ou documentário? Isso quando os realizadores, à guisa de fortalecer suas narrativas (ou, quem sabe, comercializá-las?), imprimem logo na primeira cartela: “ baseado em uma história real”. Sem querer aqui adentrar (de modo científico e, portanto, superficial) em tão bélica seara, limito-me ao campo que me pertence por direito, o da experiência, ser de simbólicos que sou. Após assistir o (não encontro adjetivos suficientes para descrevê-lo, ainda estou sob o impacto da história) filme Era o Hotel Cambridge, exibido no Festival do Rio 2016, milhares de conceitos de cinema direto e cinema verdade, encenação, captura do real caem por terra, ante a força narrativa. Diante do enorme barulho da obra de Eliane Caffé & cia, a mosca na parede voou, talvez sem entender ainda o que acontecia ao redor, enquanto nós, o público, seguíamos extasiados, sem ligar a mínima para a tal da “asserção do real”. A verdade (que na verdade, se me permitem o trocadilho, são muitas) é que o cinema é o exercício de contar histórias, sejam elas de luz e sombras, sons e silêncio. Mais do que imagens, fazer cinema é manipular o tempo, que será sempre componente de matéria e abstrato, “verdade e ficção”. Já de há muito Flaerty nos ensinara com seu Nanook que, uma vez aberta a a janela para o mundo, não me importa saber se o conteúdo tem a clara intenção de ser um registro fidedigno ou “mera” invenção da realizadora. A emoção que me atravessa, quando me deparo com uma boa história, essa sim é real, palpável e passível de transformar o mundo, quer apontemos para o lado de Lumière ou Meliés. Da mesma forma, em Era o hotel Cambrigde, filme sobre as ocupações de imóveis em são Paulo, ” o real” não está no relato da produção, que passou semanas entre os moradores do prédio, acompanhando ações para abrigar refugiados e o enfrentamento à polícia, mas na construção do cotidiano daquelas pessoas, entre as tarefas diárias e o exercício da poesia. Assim, seja ao mostrar o conserto da luz ou as intervenções artísticas, Caffé usa e abusa de nada mais do que o real por excelência. Mais do que isso. Ao esgarçar a fronteira entre o encenado e o registrado, a diretora inverte o lugar do documental, ao usar de um fragmento de documentário para friccionar o pensamento de um personagem, o maravilhoso Issam.Reais são as emoções do palestino, refugiado de uma guerra infinita em um prédio abandonado da capital paulistana, parte de uma comunidade que sobrevive, entre diferentes línguas e costumes, misturando o mungunzá ao funji angolano, o samba ao dabke palestino. Reais são as relações viscerais que sobressaem na tela, entre equipe e moradores, no enfrentamento a um sistema capitalista e, portanto, desumano...Reais são nossas lágrimas, quando vemos os territórios sensíveis se configurando diante de nossos olhos, quando as mãos e corpos se tocam, se comprimem, diante do braço pesado da polícia, que, indiferente ao debate entre real e ficção, ataca famílias, mulheres, crianças, idosos, em nome de que mesmo? Mais do que o exercício desnecessário da separação ente o real e o imaginário, cabe-nos a tarefa de mergulhar na narrativa de Hotel Cambridge, vertiginosa, visceral, dura, mas, definitivamente poética.

domingo, 2 de outubro de 2016

Sobre cinemas de rua

Se você não ama cinema de rua, não vá ao Joia. Não sinta a diferença dos cinemas blockbuster logo de início,quando se deparar com uma bilheteira sorridente,que te pergunta qual o filme que você vai ver e diz sorrindo,que já viu e é muito bom..Não vá à bombonière e compre pipoca pelo valor real do produto, ganhando de brinde o conselho de esperar um pouquinho,porque está saindo mais uma fornada, quentinha e deliciosa..Se você não gosta de cinema, não vá ao foyer do Joia,com inúmeras revistas de arte,cartazes antigos e fotografias que te levam além daquele espaço, mergulhando em um universo olimpiano de histórias que só o cinema é capaz de contar. Sobretudo, se você não ama o cinema não caminhe pela sala até chegar ao canto esquerdo onde um velho projetor reina soberano, absoluto,iluminado por um suave faixo de luz... Assim, quando der a hora da sessão, você, que ama os confortáveis cinemas de shopping e seu ambiente asséptico, não verá a magia que existe em adentrar aquela sala de exibição, antiga, pequena, onde o chão parece ranger com o peso de todas as vezes que você esteve em uma sala de cinema de rua... Em cada poltrona, desgastada pelo tempo, suas memórias pessoais se confundem,desde o primeiro filme de circo, passando pelos maravilhosos clássicos da Disney, até chegar à adolescência de inúmeros encantamentos, quando tudo que você queria fazer na vida era mergulhar em uma sala escura e ouvir histórias,que inevitavelmente se confundiriam às suas. Para captar a beleza da experiência é preciso ir além do que se costuma entender como cinema hoje em dia. Será necessário lembrar-se de uma época em que as salas de exibição fazia parte da cidade, confundindo-se com as casas, suas portas abrindo-se diretamente para a rua. Por vezes, ainda na sessão era possível ouvir os sons de carros e ônibus e a conversa animada do bilheteiro e do lanterninha. Nos intervalos do tempo cotidiano o cinema existia e persistia, quase sem nenhum glamour, mas definitivamente associado à vida de todos os dias, fabricando imaginários de sonho, enquanto confundia-se com a rotina de cada um. Naquele tempo ia-se ao cinema por descuido,por acaso, no intervalo das horas de trabalho,na fuga do cansaço, no imprevisto de um desencontro..E as salas, desgastadas pelo uso, eram quase como uma extensão de casa, onde muitas vezes o estofamento precisa ser mudado e as cortinas ainda não foram lavadas...Onde ouvimos a fala do vizinho enquanto tentamos acompanhar o desenrolar do filme.Entretanto, misturados ao componente familiar da sala,relaxados pela presença do reconfortante,do conhecido, nossas histórias se entrelaçam às narrativas do cinema e nos sentimos parte delas...Há ali um inegável peso de memória,traçado nas imagens que vemos de cada canto da sala de exibição e que reconhecemos como nossas também.Para reconhecê-las é preciso olharmos bem, quase amorosamente,para captar,entre a poeira dos cantos e o desgaste do tempo,o componente primordial e definitivo de poesia.


Trilha sonora do texto:

Final de Cinema Paradiso

segunda-feira, 6 de junho de 2016

No coração da loucura há uma aquarela

Diz-se da arte que ela é o meio de vencer a realidade, transmuta-la, transfigurá-la. Diz-se da linguagem que é a forma de construir um código simbólico comum e assim aproximar os homens. No meio das duas coisas caminha o ser humano, entre a poesia e a realidade, cambaleando entre vontade e desejo, tentando sobreviver às dores do mundo. Vez por outra, diante do sofrimento, a pele se rasga em sangue, a psique se dilacera. Se tiver tempo e afeto, talvez o sujeito sobreviva e encontre novamente a dita normalidade. Em outros casos a sensibilidade exacerba o frágil e rompe a linguagem comum, encarcerando o sujeito em seu mundo. Nasce o “louco”. Por muito tempo a necessidade moderna de controle criou a um só tempo o sujeito e a normalidade, colocando-os em cada lado da balança, para onde pendia a sociedade, dependendo da situação. É esse o tempo que Nise, o coração da loucura (Roberto Berliner, 2015) escolhe para recortar. Voltando de uma temporada do exterior, Doutora Nise da Silveira encontra no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro a medicina sendo utilizada como instrumento da dor dos pacientes. Tudo em benefício da ciência. Ao questionar os métodos dos seus colegas de jaleco, Nise é relegada ao setor de terapia ocupacional, que, à época, não passava de uma sala suja e desarrumada onde os pacientes ficavam caminhando em círculos. Ali tem início uma nova metodologia de trabalho, baseada em alternativas a choques elétricos e lobotomias, mas principalmente, na escuta e no afeto. Diariamente, com ajuda de dois enfermeiros, uma dedicada e outro completamente incrédulo, Dra Nise arregaça as mangas e começa a tentar mergulhar no universo dos pacientes, ops, dos seus clientes. A apropriação do espaço se dá na medida em que os clientes de Nise ocupam o espaço, o ressignificam, formando com seus corpos e ações novos simbólicos que a médica tenta decifrar. O objetivo não é curar a loucura, mas estabelecer uma comunicação afetiva com os clientes, possibilitando a interação.Não somente isso. A partir do momento em que encontra uma linguagem comum, Nise cria a possibilidade de potencializar a interação entre os clientes e o mundo, tornando-os sujeitos de sua própria existência. A ferramenta utilizada não poderia exibir outra senão a experiência sensível, aquela mesma que Michel Maffesoli(1998) definira como alternativa ao saber técnico, instrumentalizado, que distancia observador e observado. Assim, para haver a comunicação, é preciso mergulhar na experimentação sensível com todo o corpo, com todos os sentidos, compartilhando afetivamente as descobertas em comum. Em cada etapa do aprendizado, não há diferença entre Nise e seus clientes, posto que todos caminham de mãos dadas, seja no passeio pela floresta ou na descoberta pelo jardim. Mas é preciso descobrir a si mesmo, mergulhar na própria subjetividade. É então que entra em cena a arte, como experiência intensa e particular de cada um. O que Nise faz é apenas apresentar as ferramentas, cada um escolhe de que forma vai utilizá-la. E aqui se faz o encantamento. Ao mergulhar com profundidade no infinito de cada cliente, Nise descobre a dor de cada um, sensibiliza-se e cria laços com cada sujeito, tornando-os parte de si. É também a parte mais bela do filme, em que a câmera literalmente mergulha entre tintas e pinceis, fazendo-nos portadores do mesmo pincel, das mesmas tintas e argila que os clientes. Sente-se o cheiro acre das cores na tela, a textura das formas, a profundidade de cada percepção. Não há regras ou padrões. Somente sensibilidade e experimentação. E a arte, tão cheia de técnicas e padrões quanto à ciência se curva ante do sensível, onde as cores não estão na tela, mas no olhar e no corpo de quem vê e sente a luz que atravessa a janela, as gotas de chuva que molham no corpo, a textura da pele do outro que esta a seu lado. abrir-se ao sensível é permanecer em estado de encantamento,contemplação,tocando sua própria subjetividade e alcançando um estar “em comum” com o outro, onde a linguagem é o mais longo dos caminhos e o afeto o mais curto deles.

domingo, 5 de junho de 2016

Truth?(Conspiração e poder).Entre a Comunicação Social e o Jornalismo.

Entre muitas das tertúlias que atravessam o fazer jornalístico a mais controversa poderia ser, talvez, a da busca da verdade (se é que há uma) na construção da notícia. Já há muito que se ousou dizer que a verdade, se existente,seria dialógica, multifacetada, provisória e, finalmente, apenas uma interpretação dos fatos. Todavia, ainda atualmente é sob o holofote da produção do verídico que os jornalistas temos atuado como operadores das práticas sociais. Seja na “ficção” ou na “realidade”. Dessa forma, se há a intenção de pensar no ofício de produzir olhares por sobre a sociedade sob uma perspectiva crítica, será necessário compreender o jornalismo em um caminho oposto do percurso geral das instituições de formação no Brasil e reconhecê-lo como parte (fundamental) do grande campo da comunicação social. Logo, ser jornalista demanda dialogar continuamente com representações, que serão tão sociais na medida em que provocarem o interesse, apresentarem perguntas e convidarem à reflexão. É sob esta premissa que se fundamenta o filme Truth, baseado no livro da jornalista Mary Papes sobre a cobertura do período que antecedeu o segundo governo Bush. Tendo Cate Blanchett no papel de Papes, a narrativa se inicia com a investigação que recai sobre o presidente-candidato estadunidense e sua suposta deserção das forças armadas. Não em qualquer período, mas durante a malfadada incursão ao Vietnã. Essa será a motivação de talentosos coleguinhas, retratados no filme empenhados em provar o descompromisso do presidente e toda uma rede de proteção que foi montada para que Bush Jr. pudesse seguir seu caminho rumo à reeleição sossegadamente. A partir desse ponto a máquina jornalística se foi largamente compondo, na produção de reportagens que visassem provar que o presidente norte-americano tinha fugido às suas responsabilidades enquanto cidadão, para desconstruir sua imagem e, quem sabe, alterar o rumo das eleições. Até aí, nada novo no reino gutemberguiano. Sob a brilhante atuação de Redford, Blanchett e que tais, organizam-se testemunhas, imagens, documentos e monta-se o cenário para que seja lançado, bem ali no coração do american way of life a bomba de que Bush fugira ao compromisso com a Guerra. De modo a garantir a continuidade da trama, a curva dramática se desenvolve de tal maneira (o que já seria esperado, mas é interessante perceber como os elementos vão sendo organizados um a um) que enreda a todos os personagens, culminando, no terceiro ato do filme em uma investigação sobre o próprio fazer jornalístico em uma empresa de comunicação com fortes ligações tanto com o mercado quanto com o governo. Nesse ponto seguimos até então sem spoilers, uma vez que o fato motivador do filme é recente, está disponível para quem se aventurar pelo livro de Papes e é do conhecimento público que a grande maioria dos profissionais de imprensa relacionados ao caso foi afastada. Enquanto a derradeira parte do filme se desenvolve de forma brilhante(entre montagens e ritmo muito eficientes) me pego ainda no inicio da história, paralisada por uma pergunta, que me surge por curiosidade e por ofício: Seria de interesse público no ano de 2004 que Bush filho abandonara,em 1968 ,a convocação à guerra para se dedicar a atividades mais satisfatórias e agradáveis, enquanto o Estado americano continuava levando seus jovens aos campos de batalha?Enquanto ouço daqui o clamor de que sim, qualquer informação sobre uma figura pública guarda em si o critério de noticiabilidade que obriga o jornalista a se debruçar sobre ela (quero crer que sob a ótica da ética profissional, mas exemplos em contrário pululam por aí, desanimadores, quase todos), outra pergunta se faz presente na linha do horizonte: Seria o comparecimento e participação em uma guerra suja (como o são todas, afinal) condição fundamental para garantir ao eleitorado norte-americano a integridade e competência de um candidato à eleição majoritária no país?Em um cenário de combate que somente no ano de 1968 levou meio milhão de norte-americanos ao front e causou a morte de pelo menos 10% desse número, seria papel da imprensa questionar a ausência do presidente ou minimamente tentar compreender, perguntar, lançar olhares sobre o fato de que, ainda na época da investigação de Mary Papes & Cia, grande parte do orçamento estadunidense é destinado à manutenção de sua indústria bélica, tanto domestica quanto internacionalmente?Assim, em vez de perguntar por que Afinal Bush filho não estava na guerra e fora gentilmente deslocado para um local mais seguro, não seria mais correto questionar o envolvimento de tantos órgãos de Estado, propaganda e etc. na manutenção do espírito de que servir ao governo e a população seria reafirmar o compromisso com a guerra e, portanto, com o país? Ora, se pensarmos por esse viés, as articulações de Papes e sua equipe parecem então, não o fazer jornalístico comprometido com a “verdade”, mas, o que é mais comum, a construção de um espetáculo midiatizado onde a função do jornalista não é fazer perguntas que mergulhem no cerne dos fatos, mas que ergam seus microfones e holofotes à vida pregressa de figuras públicas(mesmo em se tratando do desastroso governo de Bush e sua dolorosa figura) apenas para deslegitimá-las ou desacreditá-las, em um modus operandi personalista e vazio? Ao longo de todo o filme, jornalistas novos e velhos empenham-se em fazer rolar a cabeça de Bush e são castigados por essa ousadia, tomados como heróis e representados como combatentes na busca pela “verdade”. Mesmo em se tratando do nefasto governo de Bush Filho, não seria correto (e jornalístico) perguntar: os fins justificam os meios, senhores?Sob a ótica da vitimização dos profissionais envolvidos na investigação, massacrados por advogados e pelo governo, não teríamos um desvio(ou, pelo menos, um olhar reducionista) de função, me arrisco a perguntar?O filme não busca em momento algum questionar a construção do fato jornalístico em si, mas compreender e reafirmar o compromisso de certo tipo de investigação onde tudo (ou quase) deve ser apresentado à opinião pública, o que seria, de certo modo, a função primeira do jornalista. Entretanto, caberia também a esse mesmo profissional, de posse de uma serie de documentos, não somente criar um retrato fidedigno baseado em relatos, mas fazer o que sua formação lhe permite (e exige): perguntar. Em um dos melhores momentos do filme, Mary/Blanchett é questionada diante de um comitê de investigação interna da emissora CBS sobre se ela teria provas do que afirmara sobre Bush. Enquanto a personagem constroi sua magnífica fala sobre a veracidade dos elementos que divulgou, penso na transformação ocorrida aqui no Brasil (não sei se em outros lugares), dos cursos de comunicação social para os de jornalismo. Sob o discurso da empregabilidade, disciplinas cujo mote seria criar consciência crítica, são, pouco a pouco, reduzidas ou modificadas para dar lugar a outras onde o viés técnico torna-se o fim e não o meio. Ora, não é difícil alcançar que os dois primeiros anos do hoje extinto curso(até onde sei) de comunicação social seriam justamente para fazer o aluno compreender seu lugar na sociedade, antes como cidadão do que como profissional,sensibilizar seu olhar para a importância da comunicação e da necessidade de refletir sobre os diferentes discursos e lugares de fala inerentes à nossa condição de seres sociais. Assim, nas disciplinas de Teoria da Comunicação, psicologia social, linguagens, etc, mais do que formar um profissional para atuar em uma função, pretende-se formar um sujeito para atuar em sociedade, observando a importância da ética, não somente profissional, mas de vida. Após dois anos, as técnicas e estratégias são então apresentadas ao sujeito que, reconhecendo-se como um elemento na sociedade e dotado de um olhar crítico, pode então apropriar-se do fazer profissional que lhe cabe. Logo, retirar da formação de profissionais de comunicação a necessidade de refletirem sobre si mesmos enquanto parte de uma coletividade é retirar destes o que torna a profissão concernente ao “social”, dando-lhe apenas o verniz tecnicista e, o que é pior, espetacular. Os resultados , todos sabem, surgem aos milhares, a cada vez que abrimos (alguém ainda o faz?) o jornal, ou consultamos os mecanismos de informação ditos tradicionais. Em vez de reflexão, sensacionalismo. Em vez de contexto, espetáculo. Em vez de público, visível. Assim na “ficção como na “realidade”, as conspirações do poder cujo resultado mais evidente assistimos todos os dias em rede nacional, se sustentam, em grande parte, pela total ausência de questionamento dos profissionais de imprensa (pressionados, ameaçados, esmagados por baixos salários,tudo isso deve ser considerado,é verdade) no exercício diário de suas tarefas. A gravidade de tais transformações se dá pelo fato de que são(ou deveriam ser),sujeitos inseridos em uma área que leva(ou levava)em seu sobrenome, o compromisso e a necessidade de ser invariavelmente social,ou seja, intrinsecamente fundamentada no que é o bem “comum”.