quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Da imprevisibilidade

No cinema, como na vida , a linguagem existe além da mera percepção da retina, onde palavras e conceitos escondem o real significado da mensagem, quase sempre reflexo do inesperado. Assim o sentido de uma obra cinematográfica não está em seus diálogos, planos de cena e iluminação, nem tão pouco na ótica do diretor. Por mais se esforce, seu discurso visual habita o plano do objetivo, onde as palavras formadas por cada gesto vão encontrar sentido e significação. Na obra Melinda e Melinda, do diretor W.Allen, os olhos vão captar uma historia comum sobre encontros e desencontros de casais no inicio da maturidade, pressionados sob a obrigatoriedade de fazerem diferença no ciclo social onde convivem e a constatação de que o tempo caminha na contramão das certezas e tudo que se pode fazer é prosseguir. As personagens e dramas sucedem-se na tela em seus discursos previsíveis, sem que exista de fato surpresa ou tragédia no que vivenciam. É apenas vida do outro, em estado de contemplação. No entanto é o instante entre palavras que guarda o sentido da mensagem, não na construção de personalidades factíveis, mas no lexo da subjetividade das relações dos personagens. O cerne do discurso da historia que não consta da sinopse do filme vai falar de contato,de comunicação,do momento em que se percebe o outro e do caráter irrevogável desse evento.Nada mais é preciso do que conectar-se à mesma freqüência de alguém para ser capaz de decodificar a mensagem subjetiva escrita nas entrelinhas das máscaras e convenções, salvas as limitações da moral e da ética de cada um. Perceber o outro é antes de tudo, mergulhar no escuro, num manancial infinito de signos distintos, imprevistos, onde a lógica se abstém de julgamento e os sentidos comuns não compõem interpretação verossímil. É preciso estar distraído para compreender e é nesse viés em que o filme narra sua história. Homens e mulheres atraem-se mutuamente, aproximam-se , relacionam-se e afastam-se sem que se possa conter ou estabelecer parâmetro por mais tentem.É antes o tempo do imprevisível que traça a rota dos acontecimentos. Dar o primeiro passo é arriscar-se ao desconhecido, no terreno da dor ou do prazer. Melinda, a personagem titulo,conhece os dois lados, caminha na linha tênue entre o sim e o não e experimenta a angustia da escolha.Se seu roteiro será comedia ou drama não depende somente dos narradores em perspectiva,confortavelmente sentados num pub filosófico a dissertar sobre lugares comuns ,mas do incerto apelo do imprevisível em sua vida,convidando-a a rir ou chorar.Sentir é inconsciente, agir é um ato de coragem alem da ficção,no terreno do talvez. texto original do blog www.magiaerazao.blogspot.com

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Renoir e a escrita da luz


Desde que tomei conhecimento da estreia de um filme sobre Renoir, me impus como meta fazer o possível para assistir..Afinal,há menos de dois anos tive a oportunidade de me aproximar dos quadros desse pintor e a explosão de cores me encantou profundamente...Sei que há aqueles que menosprezam o impressionismo como arte menor frente a ousadia cubista ou mesmo o suprematismo dos russos,mas ainda que reconheca a importância desses movimentos, não posso deixar de me encantar com o conceito de passagem do tempo que as pinceladas dos impressionistas trazem até nossos olhos quando vislumbramos seus quadros.O que importa,pelo menos para mim,não são a representações,mas as variações de cor e luz que penetram em nossa retina, provocando um contato com uma perspectiva poética do mundo E foi nesse estado de espírito que entrei no Cine Santa para assistir à versão romanceada da historia sobre o pintor francês.Na verdade, o filme fala dos últimos anos da vida de Renoir,quando já idoso,recolhia-se na paradisíaca região de Cote D´azur..So esse pequeno detalhe já me fez entender a magia de suas telas.na verdade,Renoir pintava as nuances de cor e luz que cercavam seu cotidiano,não é por acaso que não lhe faltava inspiração.Mas o filme vai alem.Em uma narrativa leve e poética, mostra as relações do pintor com suas mulheres,cujas formas ele desnudava em suas telas e com a realidade que via em seus olhos já cansados. Há,na obra,um cuidado especial com a fotografia,como não podia deixar de ser e com os aspecto poético da mis-en-cene dos atores.Independente do tom da cena mostrada,é impossível não enxergar quadros imaginários em cada plano mostrado no filme.A camera com certeza ajuda nesse quesito,movendo-se entre corpos e paisagens como a registrar lentamente cada composição do artista. Alem disso,há a personagem Andrée (Christa Theret)de estética irrepreensivelmente próxima aos quadros de Renoir e empatia imediata com o público..E sua proximidade é tanta,que a nudez frontal óbvia que enverga não causa nenhuma estranheza..Afinal não é a ela que observamos,mas a composição da própria obra do pintor,expressa no corpo que exibe...E as demais mulheres,todas, apesar dos tons suaves das telas do artista,dominam a narrativa em quase todo o tempo,entre conflitos e breves momentos de calmaria.São elas que compõem as cenas que serão materializadas na tela do artista e há um evidente mérito da direção de fotografia em registrar nuances de pele e ambiente de forma fugidia,como são de fato as pinturas impressionistas... Cabe somente uma ressalva:o final do filme não obedece a um ritmo próprio de toda a obra, sendo interrompido no clímax da tensão e substituído por uma informação posterior dada em cartela,onde se sugere que houve um reencontro dos personagens e uma posterior separação. Consegui pensar uma dezena de formas mais elegantes de se terminar o filme,inclusive pelo uso daquilo que recentemente aprendi como elipse,o uso da camera em lacunas de tempo e espaço que confere sofisticação à narrativa.Me parece que o motivo para esse lapso não pode ter sido mais medíocre do que custos de produção,o que me impediram de sair totalmente satisfeita do cinema. Renoir não merecia.

domingo, 7 de julho de 2013

A delicadeza do amor

Acabei de assistir o filme “a delicadeza do amor”,com Audrey Tautou e fiquei tão encantada com a atmosfera do filme que tive que escrever.....Para além da fotografia e da atuação de Audrey,o final é lindo,uma metáfora de um encontro entre duas pessoas ,onde uma mergulha na subjetividade da outra.Belíssimo!
Trailer A delicadeza do amor
Obs.:Essa história foi livremente inspirada no filme A delicadeza do amor,de 2011.Qualquer semelhança não terá sido mera coincidência.

No jardim onde Nathalie aguarda, Markus passeia devagar, reencontrando a cada passo restos da infância da mulher que hoje, mãos postas sobre olhos fechados, respira lentamente enquanto conta até 20. A cada momento, nas sombras do jardim, ele vê uma a uma, as meninas que um dia foram a pequena Nathalie, de vestido rodado e laço de fita nos cabelos, colhendo flores no jardim da avó e a vê logo ali, deitada na grama, um livro ao colo e a cabeça a contemplar as nuvens. Erguendo um galho da pequena trepadeira, Markus descobre uma Nathalie adolescente. Pernas pro alto, sonhadoramente,desenhando palavras no diário que está em suas mãos.Na janela a avó chama para o café,mas quem levanta já não é mais uma adolescente, mas uma mulher de seus 20 anos,que puxa pelas mãos um rapaz alto e magro e o apresenta à avó.Ele tem nas mãos uma pequena caixa de veludo azul e a avó,ao contempla-los , sorri. Markus fecha seus olhos e enxerga uma Nathalie mais velha, pálida, que caminha em direção ao canto mais fundo do jardim e se deixa cair na grama , aos soluços.Em suas mãos a mesma caixinha azul e na outra um telegrama, amassado. Em todas , ele vê a mesma mulher que agora vai chegando ao número 17 em sua contagem e espera que ele se esconda, para depois ir procurá-lo. A mesma mulher que ficara viúva jovem e que passara os últimos cinco anos enterrada em seu pequeno escritório e que um dia , sem razão aparente,cruzara com ele no caminho do bebedouro do sétimo andar do prédio em que trabalhavam.Bastara. Ao ouvir o barulho ritmado dos saltos baixos em que ela se equilibrava e contemplar a blusa vermelha que ela vestia,Markus sentiu que a vida se esvaía por entre os segundos que separavam esse momento de todos os outros que vivera. Era ali, num ambiente costumeiro, cotidiano,que os dois se encontravam todos os dias. Mas naquele dia, por estar demasiadamente distraído ou porque o dia estava silencioso e calmo, ou pela temperatura estar amena, foi que ele ouviu plenamente cada um dos ruídos que Nathalie fazia ao caminhar. O som dos saltos, o barulho do plástico das pastas em sua mão, o leve mover-se do tecido da saia comprida e um quase imperceptível som dos joelhos magros dela, que se moviam rapidamente, passo a passo.Dali para o café e o sorriso , o teatro e as caminhadas até o metro,comentando a última peça que assistiram foi um passo.E a cada dia, mais nítidos ficavam os passos, que paravam brevemente para dizer bom dia e retomavam seu caminho.E um dia,na saída do metro,assim sem avisar,as mãos se cruzaram no limite da curva do metro.Medo. Markus desaparecera do escritório por uma semana, para que Nathalie soubesse que tudo estava acabado.Tudo o quê?Se não tinham um caso,se não havia compromisso,como era que reconhecia seu caminhar dentre todos os outros?E assim, sofrendo com a falta daquilo que não tinha,foi que Markus irrompeu da sua sala e ,num esforço gigantesco,chegou até onde Nathalie estava e disse, simplesmente:sim.Ela se assustou, ficou em silêncio,mas logo depois,sorriu. Pegando-o pela mão, levou-o ate o carro dela e abriu a porta. Ele entrou e ela dirigiu em silencio por algumas horas. Logo chegaram a uma cidadezinha próxima e ela estacionou em frente a um velho portão. Era a casa da avó. A velha senhora olhou Markus profundamente por alguns segundos,sorriu para Nathalie e disse:Entrem, vou fazer um café para nós.enquanto passava o café,Nathalie pegou-o pela mão e levou-o até um quintal nos fundos da casa. Então disse: Era aqui que eu passava as minhas tardes desde criança. E ficou em silêncio. E então Markus entendeu:ao leva-lo lá, ela abria uma porta para que ele penetrasse em seu universo interior, erguesse o véu de suas lembranças e compartilhasse com ela cada momento. Viu todas as faces da menina e da mulher que ela fora e mergulhou em cada dor,cada sorriso,cada etapa de construção da pessoa que fechava agora os olhos,na contagem do pique esconde. Tudo que ela fora permanecia ali,em suspensão. Mas por sobre a poeira,intangível,permaneciam os mesmos laços de antes. Ao levá-lo lá,nas profundezas de sua memória,Nathalie abria a janela para o novo e retomava mais uma vez seu caminho pelo jardim.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

momento d.o.c-Linha de Montagem

Linha de montagem é um documentário que caminha pelos passos de Jean Rouch e seu cinema verdade. Ao revelar a imensidão do movimento operário nas greves do abc paulista da década de 80,usa dos artifícios de desconstrução e opacidade,esse último um conceito de Ismail Xavier,para mostrar a luta operária num país ainda imerso numa já hesitante ditadura.Podemos ver o uso explícito dos microfones e captadores de áudio,as vozes dos entrevistadores e as câmeras passeando por entre trabalhadores e policiais.Por vezes,o conflito escapa à representação,quando o câmera é abordado por um policial e tem sua lente ocultada pelas mãos do agente da lei.Em outros momentos,as músicas de Elis Regina e Milton Nascimento dão o tom de um movimento de massas,direcionado com maestria por um barbudo Luis Inácio.Mais do que erguer as cortinas de uma mobilização reivindicatória,Linha de montagem deixa que o público tire suas próprias conclusões sobre o evento sem interferir no julgamento.O toque diferencial do filme fica(lém da felicidade de conseguir captar raras imagens da greve) a cargo da música tema,que confere uma narrativa poética a esse episódio da história onde as lutas entre classes aparecem evidentes e viscerais.Não custa lembrar que o próprio Chico Buarque,ou autor,pertencente aos estratos economicamente favorecidos da sociedade,propõe através da obra um diálogo,um passo a frente em direção a uma sociedade mais justa.

Filme:
Filme Linha de montagem


"Linha linha de montagem
A cor a coragem
Cora coração
Abecê abecedário
Ópera operário
Pé no pé no chão
Eu não sei bem o que seja
Mas sei que seja o que será
O que será que será que se veja
Vai passar por lá
Pensa pensa pensamento
Tem sustém sustento
Fé café com pão
Com pão com pão companheiro
Pára paradeiro
Mão irmão irmão
Na mão, o ferro e ferragem
O elo, a montagem do motor
E a gente dessa engrenagente
Dessa engrenagente
Dessa engrenagente
Dessa engrenagente sai maior
As cabeças levantadas
Máquinas paradas
Dia de pescar
Pois quem toca o trem pra frente
Também de repente
Pode o trem parar
Eu não sei bem o que seja
Mas sei que seja o que será
O que será que será que se veja
Vai passar por lá
Gente que conhece e prensa
A brasa da fornalha
O guincho do esmeril
Gente que carrega a tralha
Ai, essa tralha imensa
Chamada Brasil
Samba samba são Bernardo
Sanca são Caetano
Santa santo André
Dia-a-dia diadema
Quando for, me chame
Pra tomar um mé"Chico Buarque

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Crítica:O som ao redor


Foto:Som ao Redor.Onde a candidata ao novo apartamento procurar captar a atmosfera do lugar a partir do som que ouve da varanda.


Som ao Redor, filme de Kleber Mendonça, vai na contramão das narrativas clássicas, usando o pano de fundo da descrição de uma comunidade no sentido mais amplo da palavra(no caso,uma rua), para falar de relações entre pessoas, comunicação e conflito. Ao descrever o cotidiano de moradores de uma mesma rua,a obra fala sobre silêncios e sons que percebemos no dia a dia,sem interpretá-los corretamente.A câmera funciona aqui como uma lupa,que mergulha na vida dos personagens em seus afazeres domésticos,anseios e problemas diários,como o cachorro do vizinho ou o medo de assalto.Sem entrar em detalhes sobre o histórico dos personagens,deixa que o espectador mergulhe,manipulando som e silêncio no universo de cada um.Prova disso é a sequência em que um casal passeia por um sítio e descobre uma casa abandonada.Ao explorar suas dependências,tenta adivinhar sua história,que é preenchida no filme por sons diversos.Na mesma sequência,os dois entram num cinema antigo,que também tem seu passado trazido à tona pela sugestão de sons de filmes antigos.Em todo o filme o som e o silêncio não são ilustrações,adereços da narrativa.São a própria narrativa e permeiam a vida dos personagens.Além disso,em passagens silenciosas ou barulhentas,fala da dificuldade de encontrar o outro,reconhecê-lo e dialogar com ele no cotidiano urbano atual. É importante destacar a iniciativa experimental,que ultrapassa os rasos limites do cinema nacional "televisivo",de comédias medianas e narrativas simplórias,para se arriscar numa seara ousada,sem rede de proteção,levando o péblico brasileiro que conseguir assistir o filme a uma nova viagem.
Para saber mais:
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-202700/

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Dica de Filme:Românticos Anônimos


Um típico filme europeu,dos bons,sobre relações e desencontros.Dois tímidos,cada um com sua problemática relação com o outro, se encontram no papel de patrão e empregada.Ela,uma chocolatier renomada(e anônima),é admitida como vendedora,pelo medo de dizer não e assumir os "louros"por seu trabalho.Ele,um homem maduro sem nenhuma experiência amorosa.A direção de fotografia foi muito competente e a montagem dá um tom teatral que favorece a originalidade da história.A trilha sonora é o toque final para dar o tom leve à narrativa.Dica:mantenha uma barra de chocolate por perto enquanto assiste.Pode ser necessário. Sobre: http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/romanticos-anonimos/id/17972 Veja o Trailer: trailer

Rapidinhas:sobre OZ


Só eu que achei os créditos de Oz a coisa mais linda do mundo?Uma excelente referência a Meliés e aos primeiros cineastas.De resto,uma história disney,bem contada,montada e ilustrada,mas sem grandes surpresas.Achei a boneca de porcelana lindíssima e muito delicada em sua animação e James Franco muito convincente em seu papel de trapaceiro,mas afinal de contas o que é a a Mila Kunis tava fazendo ali?Fantasiada de árvore?Interpretação péeesima!

Pra saber mais: Adoro Cinema-Filme OZ

segunda-feira, 18 de março de 2013

Entre registros e verdades


Depois de ver o documentário “Arquitetura da Destruição”; Garapa, de José Padilha e me arriscar na Filosofia de Michel Foucault, vejo a vontade de saber que engendra os discursos de poder em todos os lugares, seja na educação, nas artes, até nas redes sociais. Em qualquer lugar para onde se olhe ali está alguém, geralmente por trás da imagem, tentando convencer outro de uma suposta verdade. E é esse o território pantanoso onde se infiltram os documentários, a parte do cinema em que vejo reunirem-se algumas das áreas que mais amo, como as artes, a historia, e o jornalismo. Se pensarmos bem, todo o cinema é, como pretendia Walter Benjamin e, infelizmente, Hitler também, político. Nesse viés há na ficção, particularmente, muito mais armas, a priori, para convencer um público que estará inocentemente acomodado entre pipoca e refrigerante, preparado para ouvir e ver uma narrativa sem o compromisso com a verdade. Entretanto, entre personagens e fantasia, há um intervalo infinito do que se pode manipular, distorcer ou enganar. Desarmado, o espectador pode absorver simbolismos e “verdades” convenientes aos produtores e financiadores dos filmes. Em “Arquitetura”, por exemplo, me deparei com a “verdade” da limpeza étnica nazista, que construiu uma descomunal máquina de propaganda para convencer os alemães de que os judeus eram o “câncer” que devia ser extirpado, para benefício da raça ariana. Em favor dessa ideia, geraram filmes de cunho ficcional, mas permeados de uma intensa vontade de convencer. Retratando os judeus como sujos, ladrões, doentes e degenerados, exibidos em seus piores ângulos e associados a pragas e insetos, o que os cineastas do nacional socialismo pretendiam era inculcar na mentalidade alemã ariana o espírito da limpeza étnica, justificando o genocídio judeu. Por outro lado, diretores como Leni Riefenstahl, cineasta alemã próxima a Hitler e tida como colaboradora nazista, usavam todo o aparato tecnológico disponível à época para registrar a superioridade dos corpos alemães em sua plenitude, disputando olimpíadas ou marchando em perfeita ordem durante as campanhas militares nazistas. O resultado da campanha é largamente conhecido por todos nós e aponta para 6 milhões de judeus exterminados bem debaixo do nariz e por vezes com a colaboração de cidadãos alemães, até onde podemos julgar, o mal como regra de conduta, mas podem ter sido sinceramente absorvidos pela ideia de bem maior, o que de modo algum justifica seus atos e sua omissão mas dá uma vaga perspectiva do poder da propaganda e da vontade de saber na produção de “verdades”. Nessa lógica, qualquer um que pretenda produzir um documentário deve ter em mente que sua obra é apenas uma interpretação manipulada dos fatos e que o simples ligar de uma câmera em frente à cena altera completamente a naturalidade do quadro proposto. Prova disso é Garapa, excelente e angustiante documentário do diretor José Padilha sobre a fome em três cidades cearenses, onde a exibição do cotidiano sofrido de pais e mães, diante da ausência diária de alimento para dar a seus filhos é retratada com maestria e, preciso acrescentar, muito sangue frio. Por se tratar de documentário participativo, onde o diretor interfere, parece haver um fio condutor que sugere a sucessão de imagens e as respostas dos atores sociais. Na proposta, parece haver certa orquestração dos fatos, por mais que registre minuciosamente o cotidiano das famílias. Fica então, para o olhar mais curioso, ou podemos dizer, mais chato, pensar como seria o dia a dia das famílias sem a presença da equipe de filmagem. Em uma determinada cena, angustiante,vemos uma criança de seus dois anos, coberta de moscas, a buscar com uma colher, os últimos bocados da escassa comida, indiferente às muriçocas que continuamente pousam em sua perna cheia de pequenas feridas. Ao espectador cabe retorcer-se de aflição e pensar como conseguiu o câmera passar tanto tempo filmando a cena, sem interferir minimamente no drama do bebê.Há uma vontade de verdade, de mostrar a realidade que ultrapassa o que poderíamos chamar de ação humana, posto que qualquer um diante da cena teria a imediata reação de espantar as moscas e retirar a criança do chão. No entanto, a câmera, impavidamente, funciona como uma janela de onde se vê a família, mas não se pode intervir.

As imagens chocam. Em determinado momento duas mães, cada uma em sua casa, preparam a refeição diária das crianças, a chamada garapa. Fervendo água, acrescentam um punhado de açúcar e enchem duas mamadeiras sujas. O bebê que esta na rede, cansado de chorar, imediatamente se cala ante a visão da mamadeira. O que nos parece de uma insipidez infinita, é o que acalma o choro, o pseudo alimento tão aguardado. Cenas como essa são exibidas ao longo do documentário como uma cortina que se abre para o real. Aqui, o uso da imagem tem o objetivo de erguer uma cortina por sobre o drama da fome, o que é ético, louvável e politicamente correto. A pergunta que se apresenta não é sobre a verdade, que tão tragicamente se apresenta na tela, mas para que se possa refletir sobre o fato de existir por trás da câmera um grupo de seres humanos que compartilhou o incipiente cotidiano das famílias por dias, ou semanas. Qual o papel do cineasta diante da fome?Como se alimentou a equipe durante a gravação das cenas?Qual a foi a colaboração da produção na melhoria da vida das famílias?Coube aos atores sociais uma parte nos lucros obtidos na exibição?Houve alguma mudança em seu estado de quase inanição?Diante de uma imagem como a de várias crianças disputando um só prato de feijão no chão sujo de uma cozinha, todos nos recolhemos a nossos pudores, na plena identificação da tragédia de outro ser humano em sua mais fundamental necessidade, a comida. Entretanto, somos somente espectadores. O que coube a equipe de filmagem de Padilha somente o próprio pode relatar. Se foram criadas condições de minimizar o sofrimento daquele as pessoas, é algo a ser divulgado e aplaudido.No entanto, durante todo o período das filmagens, as pessoas continuaram com fome, para benefício da produção do filme. A verdade buscada no documentário foi a manutenção do estado de coisas para que milhares de pessoas tivessem consciência de que a fome avassaladora que invade o vídeo é real. A pergunta que não quer calar é: valeu a pena?A vontade de saber do diretor e da produção foi benéfica para essas pessoas?Seria diferente se não houvesse um documentário a ser feito, mas políticas públicas a serem executadas?A política, nesse caso, conseguiria preceder a arte, não fosse à urgência que as imagens trazem? São questões mínimas a pensar. O que não podemos esquecer, elemento que une toda produção cinematográfica, seja de ficção ou documental, cerne da discussão que arrisquei aqui, é que toda obra é feita por homens e, por isso, formada de um manancial de simbolismos e verdades,apresentadas nos filmes que produzem, ora para contribuir para um debate e um novo olhar sobre o real, ora como ferramenta de alcance assustador para as mais diversas selvagerias.Cabe ao público resistir ao impulso de mergulhar nos filmes sem aprender seu cerne,compreender que são obras feitas por pessoas, que escolheram ângulos, cores e imagens,no objetivo, ora benéfico,ora maléfico,de contar uma história.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

os vários tons de Django



Confesso que resisti o quanto pude aos encantos do Sr Tarantino. Não curto sanguinolências e a perspectiva de seus filmes não costumava ser uma das minhas preferidas.Mas havia um senão, graças a deus.Eu amei Pulp Fiction, apesar da flagrante violência.Apoiada nesse fato, me aventurei por “Bastardos Inglórios” e tal foi minha surpresa em ter adorado o filme, cada uma das gotas de sangue me pareceram muito dentro do contexto do autor.Já para ir ao cinema ver Django eu tive que vencer outro preconceito:Westerns.De todos os gêneros clássicos era o que menos me chamava atenção, embora reconheça algumas obras primas nesse meio.De cara, já sabia que algo que envolvesse Tarantino,velho oeste e escravidão, com certeza seria um ícone de violência,mas decidi engolir meus pudores e em ótimo tempo o fiz, porque Django Livre é, na minha modestíssima opinião, maravilhoso!É incrível a capacidade do diretor de manipular o público que, ao longo de todo o filme, é levado às mais diferentes reações, como risos, lágrimas, nojo e raiva sem ter tempo de respirar. A câmera é precisa na narrativa dos detalhes e a fotografia, como não poderia deixar de ser, é maravilhosa. Fora isso, Tarantino constroi personagens extremamente carismáticos, usando para isso seu costumeiro humor negro, que funciona absurdamente bem com Leonardo di Caprio na pele de um senhor de escravos extremamente violento. Não se pode negar também que Jamie Fox está maravilhoso no papel do herói Django,escravo liberto pelo Dr. King Schultz (sensacional atuação de Christoph Waltz). Não tenho sólidos conhecimentos das influências de Tarantino, mas os outros filmes que assisti dele me levaram a crer numa óbvia estética de HQ que tem tudo a ver com o clima velho oeste do longa. E o diretor usa esse recurso com maestria, inserindo legendas e movimentos de câmera que já o caracterizaram em filmes anteriores, como se víssemos os quadros das revistas em quadrinhos ganharem vida na telona.
Fora isso, os velhos usos de sangue em profusão (Tarantino eleva á enésima potência a quantidade de sangue que pode existir no corpo humano tornando cada tiro um banho vermelho na tela), em cortes secos e em sequencias que incrivelmente unem humor e drama, outra
característica do diretor. A trilha sonora também é primorosa e leva o público a uivar de vingança, nas cenas finais. Já não é de hoje que o diretor traz à tela a personificação de nossos sentimentos mais primários, através de revanche com personagens históricos(caso da explosão de um cinema com o próprio Hitler em Bastardos Inglórios).Até mesmo os pacifistas mais renitentes (meu caso)se pegam querendo um final bem doloroso para alguns dos vilões(caso de Samuel L Jackson na pele do bizarro mordomo Stephen) e penso que a intenção do diretor é esta mesma:romper os limites do real e fazer o espectador embarcar na aventura, como se cavalgasse na garupa do protagonista.Afinal de contas,se há um lugar onde a violência sempre existiu foi no mundo dos quadrinhos.Entre heróis e bandidos,sangue e violência sempre foram o mote para inúmeras narrativas.
Para não fazer somente loas ao filme e querendo ser bem chata, poderia falar sobre o estímulo à violência e blá blá blá,mas sinceramente não acho que este seja o caso.A estética escolhida pelo diretor deixa bem claro que é de ficção que estamos falando,o que não impede que se possa visualizar uma crítica social no que diz respeito à visão de um negro como herói americano e a consciência de que nem os heróis são totalmente puros.Nos filmes de Tarantino não há mais limpas entre os personagens, razão talvez da completa identificação com o público e da reação emocionada da plateia durante todo o filme.Como gran finale,Tarantino prepara uma surpresa para seus fãs.Mais informações seria Spoiler,então me limito a dizer que o filme é,por todos os motivos,imperdível
Update: após escrever o texto pesquisei sobre a reação de críticos a Django e percebi que, nos EUA houve uma grande repulsa ao uso do termo nigger, usado largamente no filme e que, na cultura estadunidense é considerado uma serie ofensa aos negros. Sem querer meter a mão na cumbuca alheia, penso que a intenção do diretor era essa mesma, mostrar o sofrimento e o desrespeito aos negros em seu país e o tratamento desumano que tiveram por seus antepassados americanos, por isso o uso da linguagem pouco cavalheiresca.Depõe a favor do diretor a sequência em que retrata como imbecis e incompetentes fazendeiros escravocratas,reunidos em um grupo que se assemelha à famigerada KKK,de triste memória.Mais parcial e correto impossível.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Lincoln:entre o mito e as verdades históricas



Muito tempo sem postar depois de meses de estudos intensos. Finalmente aprovada no mestrado de comunicação,começo a tirar o atraso na minha lista de indicados ao Oscar começando pelo filme que mais gostaria de assistir:Lincoln.Dirigido por Steven Spielberg e baseado na obra literária “Team of Rivals: The Genius of Abraham Lincoln”, de Doris Kearns Goodwin,a narrativa é centrada durante a guerra civil americana.De cara já sabia que seria um filmaço, porque se há um mito norte-americano, esse atende pelo nome de Abraham Lincoln, ainda mais interpretado pelo Sr Daniel “meu pé esquerdo” Day-Lewis, ator que carrega uma certa devoção em seu meio profissional, pela entrega em todos os seus personagens.Basta citarmos obras como “Sangue-negro”, “a época da inocência” e o maravilhoso “ Em nome do pai”, para termos a ideia de onde o senhor Day Lewis pode chegar quando assume uma persona.Essa característica fica bem clara em todos os momentos do filme, pelo que parece ser uma escolha de Spielberg em delinear a silhueta de Daniel, destacando o queixo proeminente e a barba que tanto identificaram Lincoln. Parece-nos que é o próprio presidente norte-americano que se revela no jogo de claro e escuro na maior parte das cenas do filme, como se a atenuar ao máximo o limite entre realidade e ilusão e fazer o público questionar se não é mesmo o próprio Lincoln que esta ali na tela.

Para além do mito


Resta ao filme muito pouco o que fazer, depois do milagre da ressurreição daquele que foi o 16 ᵒ presidente americano e talvez o mais famoso.Podemos ver a atuação primorosa de Sally Field como a primeira dama,ou a sucessão de personagens políticos que, dada a licença poética pedida pelo roteirista Tony Kouchner,ajudam a compor atmosfera de uma nação dividida e em guerra. Dessa forma, ao reagir a críticas de políticos contemporâneos de Connecticut(no filme o estado volta contra a emenda que elimina a escravidão)sobre a verdade histórica,Tony afirma que sim,usou de licença literária,para além da verdade histórica. Isso talvez cause a fúria de muitos historiadores e cientistas, mas a verdade da imagem está, na maior parte das produções comerciais cinematográficas, para além dos registros e documentos, lição aprendida por qualquer um que assista adaptações de épicos e documentários cujo registro histórico deixa a desejar. Quase sempre a escolha dos diretores recai sobre uma narrativa ficcional que privilegia o espetáculo em detrimento da verdade,seja ela qual for. Isso não tira o brilho costumeiro do filme de Spielberg. Se alguém sabe fazer bem um espetáculo, é ele.Usando todos os recursos de câmera que sua colossal industria cinematográfica tem direito,ele reconstroi uma época,coisa que já esta acostumado a fazer.Entretanto,engana-se quem pensa que Lincoln é um filme de guerra,no sentido das batalhas sangrentas do Resgate do soldado Ryan,do mesmo Spielberg.Há guerra sim,mas ela é seca,silenciosa e travada muito longe dos campos de batalha,nos escritórios e salas dos congressistas americanos,durante a tentativa do presidente Lincoln de conseguir aprovar a emenda que suprime a escravidão nos EUA.Se há corpos e sim, eles aparecem, são fruto das decisões políticas dos dissidentes da guerra civil.

Relembrando a história

Para quem não sabe, a guerra civil dividiu o norte e o sul americanos entre escravocratas e abolicionistas e teve o saldo de mais de 600 mil mortos durante o final do século XIX. Coube a Lincoln administrar interesses e equilibrar-se entre o abolicionista moderado que era e o presidente de uma nação onde as razões econômicas encontravam desde então sua força maior no Estado. Todos os conflitos e manobras, algumas absolutamente escusas, estão ali no filme retratadas em diálogos longos e por vezes difíceis de compreender para qualquer um que não tenha algum conhecimento de história norte-americana.Ainda assim, as interpretações são primorosas e a direção de arte foi muito feliz na reprodução fiel(não se podia esperar outra coisa com um orçamento “spielbergiano”) da época em que viveu um dos maiores mitos americanos.Para nós brasileiros, fica uma incrível e dolorosa semelhança com a política nacional e com a certeza de que ninguém, seja no executivo ou no legislativo,tem suas mãos 100% limpas no sistema federativo.

Entre mito e realidade, a magia do cinema.

No final, o resultado da votação pela emenda coloca congressistas e ex-escravos sob uma nova perspectiva, conta que nós aqui no Brasil ainda não conseguimos fechar: a liberdade política deve acompanhar a liberdade individual, sobre isso não resta a menor dúvida, mas que meios usar para garantir a todos o pleno exercício da cidadania?No final, não coube a Lincoln responder, assassinado por um radical do sul. Nem nós,do outro lado do hemisfério conseguimos, tão pouco.No filme de Spielberg coube tão somente a elegia de uma figura histórica em toda sua plenitude.Todos os erros e acertos de Lincoln sobressaem na tela para quem os quiser enxergar.Não são maiores do que o mito que se ergue sob a atuação magistral de Day-Lewis.O filme gira,como não poderia deixar de ser,em torno de sua atuação e todos os esforços,de iluminação,arte,câmera e direção,confluem na tentativa(bem sucedida) de ressuscitar Lincoln.À parte a história com H maiúsculo,vale encarar cada um dos 150 minutos do filme e compreender a origem de todos os prêmios que Lewis ganhou e ainda deve arrebanhar até o fim do Oscar,provavelmente.Lincoln não faria melhor.

Ficha técnica:
Lincoln é um filme de drama e biográfico dirigido por Steven Spielberg com Sally Field como Mary Todd Lincoln e Daniel Day-Lewis como Abraham Lincoln. Wikipedia Data de lançamento: 8 de outubro de 2012 (mundial) Direção: Steven Spielberg Duração: 150 minutos Roteiro: Tony Kushner, John Logan, Doris Kearns Goodwin Prêmios: Screen Actors Guild Award para melhor ator (principal), Golden Globe Award de Melhor Ator em Filme Dramático

Para saber mais: A Guerra Civil Americana (Guerra de Secessão)