segunda-feira, 18 de março de 2013

Entre registros e verdades


Depois de ver o documentário “Arquitetura da Destruição”; Garapa, de José Padilha e me arriscar na Filosofia de Michel Foucault, vejo a vontade de saber que engendra os discursos de poder em todos os lugares, seja na educação, nas artes, até nas redes sociais. Em qualquer lugar para onde se olhe ali está alguém, geralmente por trás da imagem, tentando convencer outro de uma suposta verdade. E é esse o território pantanoso onde se infiltram os documentários, a parte do cinema em que vejo reunirem-se algumas das áreas que mais amo, como as artes, a historia, e o jornalismo. Se pensarmos bem, todo o cinema é, como pretendia Walter Benjamin e, infelizmente, Hitler também, político. Nesse viés há na ficção, particularmente, muito mais armas, a priori, para convencer um público que estará inocentemente acomodado entre pipoca e refrigerante, preparado para ouvir e ver uma narrativa sem o compromisso com a verdade. Entretanto, entre personagens e fantasia, há um intervalo infinito do que se pode manipular, distorcer ou enganar. Desarmado, o espectador pode absorver simbolismos e “verdades” convenientes aos produtores e financiadores dos filmes. Em “Arquitetura”, por exemplo, me deparei com a “verdade” da limpeza étnica nazista, que construiu uma descomunal máquina de propaganda para convencer os alemães de que os judeus eram o “câncer” que devia ser extirpado, para benefício da raça ariana. Em favor dessa ideia, geraram filmes de cunho ficcional, mas permeados de uma intensa vontade de convencer. Retratando os judeus como sujos, ladrões, doentes e degenerados, exibidos em seus piores ângulos e associados a pragas e insetos, o que os cineastas do nacional socialismo pretendiam era inculcar na mentalidade alemã ariana o espírito da limpeza étnica, justificando o genocídio judeu. Por outro lado, diretores como Leni Riefenstahl, cineasta alemã próxima a Hitler e tida como colaboradora nazista, usavam todo o aparato tecnológico disponível à época para registrar a superioridade dos corpos alemães em sua plenitude, disputando olimpíadas ou marchando em perfeita ordem durante as campanhas militares nazistas. O resultado da campanha é largamente conhecido por todos nós e aponta para 6 milhões de judeus exterminados bem debaixo do nariz e por vezes com a colaboração de cidadãos alemães, até onde podemos julgar, o mal como regra de conduta, mas podem ter sido sinceramente absorvidos pela ideia de bem maior, o que de modo algum justifica seus atos e sua omissão mas dá uma vaga perspectiva do poder da propaganda e da vontade de saber na produção de “verdades”. Nessa lógica, qualquer um que pretenda produzir um documentário deve ter em mente que sua obra é apenas uma interpretação manipulada dos fatos e que o simples ligar de uma câmera em frente à cena altera completamente a naturalidade do quadro proposto. Prova disso é Garapa, excelente e angustiante documentário do diretor José Padilha sobre a fome em três cidades cearenses, onde a exibição do cotidiano sofrido de pais e mães, diante da ausência diária de alimento para dar a seus filhos é retratada com maestria e, preciso acrescentar, muito sangue frio. Por se tratar de documentário participativo, onde o diretor interfere, parece haver um fio condutor que sugere a sucessão de imagens e as respostas dos atores sociais. Na proposta, parece haver certa orquestração dos fatos, por mais que registre minuciosamente o cotidiano das famílias. Fica então, para o olhar mais curioso, ou podemos dizer, mais chato, pensar como seria o dia a dia das famílias sem a presença da equipe de filmagem. Em uma determinada cena, angustiante,vemos uma criança de seus dois anos, coberta de moscas, a buscar com uma colher, os últimos bocados da escassa comida, indiferente às muriçocas que continuamente pousam em sua perna cheia de pequenas feridas. Ao espectador cabe retorcer-se de aflição e pensar como conseguiu o câmera passar tanto tempo filmando a cena, sem interferir minimamente no drama do bebê.Há uma vontade de verdade, de mostrar a realidade que ultrapassa o que poderíamos chamar de ação humana, posto que qualquer um diante da cena teria a imediata reação de espantar as moscas e retirar a criança do chão. No entanto, a câmera, impavidamente, funciona como uma janela de onde se vê a família, mas não se pode intervir.

As imagens chocam. Em determinado momento duas mães, cada uma em sua casa, preparam a refeição diária das crianças, a chamada garapa. Fervendo água, acrescentam um punhado de açúcar e enchem duas mamadeiras sujas. O bebê que esta na rede, cansado de chorar, imediatamente se cala ante a visão da mamadeira. O que nos parece de uma insipidez infinita, é o que acalma o choro, o pseudo alimento tão aguardado. Cenas como essa são exibidas ao longo do documentário como uma cortina que se abre para o real. Aqui, o uso da imagem tem o objetivo de erguer uma cortina por sobre o drama da fome, o que é ético, louvável e politicamente correto. A pergunta que se apresenta não é sobre a verdade, que tão tragicamente se apresenta na tela, mas para que se possa refletir sobre o fato de existir por trás da câmera um grupo de seres humanos que compartilhou o incipiente cotidiano das famílias por dias, ou semanas. Qual o papel do cineasta diante da fome?Como se alimentou a equipe durante a gravação das cenas?Qual a foi a colaboração da produção na melhoria da vida das famílias?Coube aos atores sociais uma parte nos lucros obtidos na exibição?Houve alguma mudança em seu estado de quase inanição?Diante de uma imagem como a de várias crianças disputando um só prato de feijão no chão sujo de uma cozinha, todos nos recolhemos a nossos pudores, na plena identificação da tragédia de outro ser humano em sua mais fundamental necessidade, a comida. Entretanto, somos somente espectadores. O que coube a equipe de filmagem de Padilha somente o próprio pode relatar. Se foram criadas condições de minimizar o sofrimento daquele as pessoas, é algo a ser divulgado e aplaudido.No entanto, durante todo o período das filmagens, as pessoas continuaram com fome, para benefício da produção do filme. A verdade buscada no documentário foi a manutenção do estado de coisas para que milhares de pessoas tivessem consciência de que a fome avassaladora que invade o vídeo é real. A pergunta que não quer calar é: valeu a pena?A vontade de saber do diretor e da produção foi benéfica para essas pessoas?Seria diferente se não houvesse um documentário a ser feito, mas políticas públicas a serem executadas?A política, nesse caso, conseguiria preceder a arte, não fosse à urgência que as imagens trazem? São questões mínimas a pensar. O que não podemos esquecer, elemento que une toda produção cinematográfica, seja de ficção ou documental, cerne da discussão que arrisquei aqui, é que toda obra é feita por homens e, por isso, formada de um manancial de simbolismos e verdades,apresentadas nos filmes que produzem, ora para contribuir para um debate e um novo olhar sobre o real, ora como ferramenta de alcance assustador para as mais diversas selvagerias.Cabe ao público resistir ao impulso de mergulhar nos filmes sem aprender seu cerne,compreender que são obras feitas por pessoas, que escolheram ângulos, cores e imagens,no objetivo, ora benéfico,ora maléfico,de contar uma história.

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