sábado, 22 de agosto de 2015

Territórios sensíveis- 21/08/2015 - Sobre narrativas, silêncios e, claro, dinossauros



Você sabe a diferença entre o Tiranossauro Rex e o Velociraptor?Pedro sabe. Para o menino, em seus oito anos, o que distingue os dois espécimes de dinossauros é que, enquanto o velociraptor efetua sons para atrair seus semelhantes, o T-Rex não se comunica com ninguém, pois seu instinto malvado o leva a não se relacionar, a não ser para a procriação. Foi assim, com a sapiência de um paleontólogo que Pedro me explicou porque não podia dublar o temido dinossauro, em mais um exercício de linguagem fílmica. E partiu do menino a ideia de fazer uma dublagem, uma vez que questionou qual seria o nome técnico da ação de colocar vozes diferentes em personagens de filmes. Informado que se tratava de dublagem, logo quis associar à sua imagem o som de seus animais mais amados: os dinossauros. Câmera a postos, dinossauro nas mãos, ele efetuou sua mis-èn-cene e logo pediu para ver o resultado. - Gostou Pedro? -Sim! Essa foi a sorridente resposta. É fato que foi necessário um pouco de paciência para chegar até ele, pois Pedro revela sua autonomia em pequenos gestos, como o de responder ou não uma pergunta ou permitir que nos aproximemos dele. Da mesma forma, não aceita realizar qualquer atividade, somente aquelas pelas quais se sente verdadeiramente atraído, no seu tempo próprio de interesse. Já se tornou comum ouvi-lo dizer, para cada um dos educadores que aparecem pela enfermaria:- “Não, não quero agora” e, logo depois, curioso pelo que se vai passar, abandonar sua atividade anterior e prosseguir na nova proposta como entusiasmo e muitos (muitos!) questionamentos. Assim foi nessa sexta-feira. Pra começar, ele não queria ver o filme que havia feito, o mesmo filme em que havia atuado, dirigido e escolhido cada uns dos sons da narrativa. Primeiro vinha o desenho que estava assistindo, o que a equipe considerou muito justo.Fim do desenho, ele chama uma das educadoras para ver o seu filme. Interfere em cada etapa, opinando com propriedade sobre o resultado esperado, critica elementos, pede outros e, no final, gosta do que vê. “-Parece até filme de verdade”, exclama, felicíssimo!Uma vez aberta a porta, não há limite para a quantidade de filmes que Pedro quer ver. Ele vê todos, concentrado e em silêncio, sem despregar os olhos da tela, mesmo que, vez por outra, alguns elementos estranhos se unam à narrativa do filme, como as silhuetas dos profissionais de saúde que vem checar seus aparelhos. Mas nada se compara a sua expressão de felicidade quando pede que se coloque seu filme predileto, Jurassic Park. Ele comenta cada segundo, da abertura do DVD às primeiras cenas, chamando insistentemente a mãe, semi-adormecida do seu lado, para ver o filme com ele. Felicidade que não se altera, mesmo que ele tenha que ser interrompido para lanchar, ou para que confiram as informações nos aparelhos que o mantém vivo. Da mesma forma, mesmo que veja filmes repetidos, escolhidos no cardápio das atividades de cinema, seu rosto se mantém impassível,imerso na história, seus olhos ligeiramente arregalados quando vê algum elemento que lhe chama atenção. Hoje Pedro tem um companheiro, Gabriel, que em seus quatro anos resiste o quanto pode a manter-se quieto em sua cama. Sob os apelos da mãe,escolheu um filme para ver, “Ernesto no país do futebol” e então sossegou. Ao longo do filme os dois rostinhos não desviaram um só minuto da tela, acompanhando as evoluções de meninos brasileiros e argentinos, que disputavam um jogo de futebol. Tão concentrado estava Gabriel que nem ao menos notou quando a mãe saiu por um momento, tanta a conexão criada com o filme, como se o ambiente hospitalar, transformado em sala de cinema peculiar, fosse aos poucos convocando cada sentido dos meninos, trazendo seus olhos para frente da tela e vinculando-os às narrativas. Aqui os territórios de sensibilidade vão pouco a pouco se constituindo diante de nossos olhos, quando as histórias vistas e vivenciadas trazem um recorte de mundo, um personagem diferente, que se mistura ao cotidiano dos meninos. O cinema nesse ambiente é quase como uma alfabetização de sentidos, um espaço que se cria entre pessoas, culturas e narrativas, que as refazem silenciosamente, a cada filme visto. Também eu me refaço a cada dia, a cada experiência, traçando novos mapas de observação. Assim, novos recortes sensíveis se reorganizam, convocando meu olhar e sensibilidade para além do filme, mas para o espaço em que este é exibido e para os sujeitos que ali estão. Há múltiplos elementos que se relacionam e interações ainda não desvendadas, como os profissionais que interagem com os pacientes, não na ação técnica da necessidade, mas no percurso afetivo, de um brinquedo que se traz, em uma conversa retomada. Por trás dos afazeres que se encarregam de garantir a permanência da vida, há portas que se abrem,quando profissionais e pacientes se encontram, conversam e reforçam laços afetivos e portas que também se fecham, na constatação de que não é possível a um só tempo abarcar toda a complexidade do cenário. Há sempre o silêncio e o inexplorado, aquilo que não se ousa compreender, como duas crianças, que dormiam enquanto ali estávamos, sem que ninguém estivesse com elas. Uma delas era uma menina de aparentes seis anos, cujo pequeno corpo tremia, enrolada em seu cobertor rosa. Frio?Medo?Enfermidade? Tudo isso junto, talvez. O fato é que estava só em uma enfermaria, sem responsável que a acompanhasse, como informou a médica, pesarosamente. E então enxergo subitamente a enormidade daquele espaço, onde diferentes histórias se cruzam. Há silêncios e dores que não podem ser minimizados pela simples proposta de atividades e ausências que o filme não pode exterminar. É preciso ir além, pensando em formas de fazer a experiência sensível chegar até essa criança, não para que a vivência fílmica se torne transformadora, critica ou ética, mas para que seu cotidiano se torne mais humano, preenchido de alguma forma de afeto.Essa talvez seja a tarefa mais básica, mas também a mais importante a ser realizada.

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