segunda-feira, 6 de junho de 2016

No coração da loucura há uma aquarela

Diz-se da arte que ela é o meio de vencer a realidade, transmuta-la, transfigurá-la. Diz-se da linguagem que é a forma de construir um código simbólico comum e assim aproximar os homens. No meio das duas coisas caminha o ser humano, entre a poesia e a realidade, cambaleando entre vontade e desejo, tentando sobreviver às dores do mundo. Vez por outra, diante do sofrimento, a pele se rasga em sangue, a psique se dilacera. Se tiver tempo e afeto, talvez o sujeito sobreviva e encontre novamente a dita normalidade. Em outros casos a sensibilidade exacerba o frágil e rompe a linguagem comum, encarcerando o sujeito em seu mundo. Nasce o “louco”. Por muito tempo a necessidade moderna de controle criou a um só tempo o sujeito e a normalidade, colocando-os em cada lado da balança, para onde pendia a sociedade, dependendo da situação. É esse o tempo que Nise, o coração da loucura (Roberto Berliner, 2015) escolhe para recortar. Voltando de uma temporada do exterior, Doutora Nise da Silveira encontra no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro a medicina sendo utilizada como instrumento da dor dos pacientes. Tudo em benefício da ciência. Ao questionar os métodos dos seus colegas de jaleco, Nise é relegada ao setor de terapia ocupacional, que, à época, não passava de uma sala suja e desarrumada onde os pacientes ficavam caminhando em círculos. Ali tem início uma nova metodologia de trabalho, baseada em alternativas a choques elétricos e lobotomias, mas principalmente, na escuta e no afeto. Diariamente, com ajuda de dois enfermeiros, uma dedicada e outro completamente incrédulo, Dra Nise arregaça as mangas e começa a tentar mergulhar no universo dos pacientes, ops, dos seus clientes. A apropriação do espaço se dá na medida em que os clientes de Nise ocupam o espaço, o ressignificam, formando com seus corpos e ações novos simbólicos que a médica tenta decifrar. O objetivo não é curar a loucura, mas estabelecer uma comunicação afetiva com os clientes, possibilitando a interação.Não somente isso. A partir do momento em que encontra uma linguagem comum, Nise cria a possibilidade de potencializar a interação entre os clientes e o mundo, tornando-os sujeitos de sua própria existência. A ferramenta utilizada não poderia exibir outra senão a experiência sensível, aquela mesma que Michel Maffesoli(1998) definira como alternativa ao saber técnico, instrumentalizado, que distancia observador e observado. Assim, para haver a comunicação, é preciso mergulhar na experimentação sensível com todo o corpo, com todos os sentidos, compartilhando afetivamente as descobertas em comum. Em cada etapa do aprendizado, não há diferença entre Nise e seus clientes, posto que todos caminham de mãos dadas, seja no passeio pela floresta ou na descoberta pelo jardim. Mas é preciso descobrir a si mesmo, mergulhar na própria subjetividade. É então que entra em cena a arte, como experiência intensa e particular de cada um. O que Nise faz é apenas apresentar as ferramentas, cada um escolhe de que forma vai utilizá-la. E aqui se faz o encantamento. Ao mergulhar com profundidade no infinito de cada cliente, Nise descobre a dor de cada um, sensibiliza-se e cria laços com cada sujeito, tornando-os parte de si. É também a parte mais bela do filme, em que a câmera literalmente mergulha entre tintas e pinceis, fazendo-nos portadores do mesmo pincel, das mesmas tintas e argila que os clientes. Sente-se o cheiro acre das cores na tela, a textura das formas, a profundidade de cada percepção. Não há regras ou padrões. Somente sensibilidade e experimentação. E a arte, tão cheia de técnicas e padrões quanto à ciência se curva ante do sensível, onde as cores não estão na tela, mas no olhar e no corpo de quem vê e sente a luz que atravessa a janela, as gotas de chuva que molham no corpo, a textura da pele do outro que esta a seu lado. abrir-se ao sensível é permanecer em estado de encantamento,contemplação,tocando sua própria subjetividade e alcançando um estar “em comum” com o outro, onde a linguagem é o mais longo dos caminhos e o afeto o mais curto deles.

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