domingo, 2 de outubro de 2016

Sobre cinemas de rua

Se você não ama cinema de rua, não vá ao Joia. Não sinta a diferença dos cinemas blockbuster logo de início,quando se deparar com uma bilheteira sorridente,que te pergunta qual o filme que você vai ver e diz sorrindo,que já viu e é muito bom..Não vá à bombonière e compre pipoca pelo valor real do produto, ganhando de brinde o conselho de esperar um pouquinho,porque está saindo mais uma fornada, quentinha e deliciosa..Se você não gosta de cinema, não vá ao foyer do Joia,com inúmeras revistas de arte,cartazes antigos e fotografias que te levam além daquele espaço, mergulhando em um universo olimpiano de histórias que só o cinema é capaz de contar. Sobretudo, se você não ama o cinema não caminhe pela sala até chegar ao canto esquerdo onde um velho projetor reina soberano, absoluto,iluminado por um suave faixo de luz... Assim, quando der a hora da sessão, você, que ama os confortáveis cinemas de shopping e seu ambiente asséptico, não verá a magia que existe em adentrar aquela sala de exibição, antiga, pequena, onde o chão parece ranger com o peso de todas as vezes que você esteve em uma sala de cinema de rua... Em cada poltrona, desgastada pelo tempo, suas memórias pessoais se confundem,desde o primeiro filme de circo, passando pelos maravilhosos clássicos da Disney, até chegar à adolescência de inúmeros encantamentos, quando tudo que você queria fazer na vida era mergulhar em uma sala escura e ouvir histórias,que inevitavelmente se confundiriam às suas. Para captar a beleza da experiência é preciso ir além do que se costuma entender como cinema hoje em dia. Será necessário lembrar-se de uma época em que as salas de exibição fazia parte da cidade, confundindo-se com as casas, suas portas abrindo-se diretamente para a rua. Por vezes, ainda na sessão era possível ouvir os sons de carros e ônibus e a conversa animada do bilheteiro e do lanterninha. Nos intervalos do tempo cotidiano o cinema existia e persistia, quase sem nenhum glamour, mas definitivamente associado à vida de todos os dias, fabricando imaginários de sonho, enquanto confundia-se com a rotina de cada um. Naquele tempo ia-se ao cinema por descuido,por acaso, no intervalo das horas de trabalho,na fuga do cansaço, no imprevisto de um desencontro..E as salas, desgastadas pelo uso, eram quase como uma extensão de casa, onde muitas vezes o estofamento precisa ser mudado e as cortinas ainda não foram lavadas...Onde ouvimos a fala do vizinho enquanto tentamos acompanhar o desenrolar do filme.Entretanto, misturados ao componente familiar da sala,relaxados pela presença do reconfortante,do conhecido, nossas histórias se entrelaçam às narrativas do cinema e nos sentimos parte delas...Há ali um inegável peso de memória,traçado nas imagens que vemos de cada canto da sala de exibição e que reconhecemos como nossas também.Para reconhecê-las é preciso olharmos bem, quase amorosamente,para captar,entre a poeira dos cantos e o desgaste do tempo,o componente primordial e definitivo de poesia.


Trilha sonora do texto:

Final de Cinema Paradiso

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